9 Setembro 2018      11:43

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O reencontro com Rollerball

O reencontro com Rollerball, o de 2002.

O espírito de cada época é prisão a que ninguém escapa, pois não se percebe como tal. Mecanismo ilusório, visto como livro de instruções; isto é, uma necessidade determinada por regras supra-terrenas. Enfim, crença que não se distingue da fé, já estamos habituados.

Zeitgeist – Espírito da época, como conjunto de palavras com um certo significado, nada a dizer. Olhando para atrás, olhar científico, de precisão, sim, terá havido um, interconexões e influências que mais tarde podem ser expostas e analisadas. Mas já quanto ao hoje a olhar para si próprio… Sejamos escrupulosos (vamos lá, ousados): não é mais do que um colete à prova de bala que não é dado a usar à maior parte, mas protege alguns, que se julgam eleitos. Da maior parte, uma esmagadora proporção também os vê como eleitos. É a força inabalável e perniciosa do efeito religioso. A táctica é sempre a mesma, banal: eis a imensidão universal, insubstituível, firme, brilhante, activa; agora olha para ti, infinitésimo, ajusta-te e aguarda, respeita quem te guia – e, entretanto, vive. Como se livre, é a propriedade escondida no subtexto – referir o direito à liberdade era meio caminho para a sua percepção como obstáculo.

O infinitésimo olha para todos os lados e nada avista para lá do universo reconhecível, o que o assusta: ensinam-lhe o Caos, como substância, mas, acima de tudo, como conceito desviante e aterrador. A substância caótica é transformável em imagem, logo tem mais força, mas dissipa-se com o tempo, uma vez estabelecida a rotina; o conceito pode viver para sempre na abstracção que invoca. Não lhe dizem, ao infinitésimo, que o Caos, no seu contexto, pode ser sinónimo de libertação, de total libertação, para lá do sossego das vistas curtas e da acalmia dos sentidos. Liberdade que nesses termos é, em si, reconheçamo-lo, inumana. A nossa estrutura óssea teme-a, a estrutura mental, quando sabe mais (e sabe mais quase sempre), rejeita-a. Mas, vá-se lá saber porquê, os humanos sonham e (não raras vezes) reconhecem os seus sonhos. Pior, reconhecem-se nesses sonhos. Uma vez acordados, transmitido o vírus, sonham-se inevitavelmente nesses sonhos, no que supõem a plena racionalidade exclusiva da luz do dia. Ainda assim, o tempo passa e, desde o seus primórdios, o bom do sapiens sabe como escapar à influência desse poder, intuição que precede a razão. A criança vê o fogo, sente o fascínio, mas não se projecta contra as chamas. Muito poucas tentam tocá-las sequer. As crianças, por definição, não se suicidam. Já os adultos, sim, atiram-se para a morte certa nas mais variadas circunstâncias. Seguramente pelo binómio: compreensão/absorção dos sonhos + não lhes ter escapado. Muito poucos, é claro, um em cinquenta milhões (cinquenta e um milhões trezentos e quarenta e sete mil e vinte e sete, para ser exacto). Nem sempre é possível escapar, a natureza dos humanos precisa dos seus…acidentes. Desses, para o que está em causa, interessam-nos os casos em que está excluida a doença: falamos de actos voluntários que não são desencadeados por sintomas depressivos. E casos em que é preciso ter absorvido o sonho, não simplesmente tê-lo compreendido, para que fique claro… A construção toca, por fim, os céus, alguns, muito poucos, dos que não escaparam fizeram-no propositadamente. A morte sobreveio, mas por força do ideal extremo, o desígnio dos sonhos, ritual sacrificial assente no desejo de libertação. Se total, pois muito bem, melhor assim. Morre-se, mas nos termos de cada um.

No entanto, como alguém disse, a vida tenta impôr a sua conservação, seja por que meios fôr, não pode ser de outra forma. Eis quando o cinema entra na equação… Filmes que a certa altura determinam o Caos e o [gerador / instigador / problemático / provocador / inocente + sujeito da acção] se salva no final (não importa se dorido ou não, se para nada, para a aterradora consequência ou para o final feliz (sempre na direcção do sol nascente))? Sim, filmes que se desvinculam de qualquer moral inclusiva (mantendo o decoro, no entanto, o rigor ético do indivíduo). Filmes que não apaixonam a vasta maioria, por razões já referidas. Filmes feitos necessariamente depois de 1970, com uma excepção: os filmes de Chaplin antes de Limelight. Filmes feitos para a vida, e logo da vida; afinal, falamos da sublime libertação.

E exemplos? Três dos mais notáveis: Dawn of the Dead (1978), de George A. Romero, Escape from Los Angeles (1996), de John Carpenter, e Rollerball (2002), de John McTiernan. Quanto ao último, pelo que foi dito antes e por ter sido dirigido por quem foi e quando foi, é, neste momento, o filme mais importante do século XXI.

 

Imagem de basementrejects.com

 

 

 

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