28 Abril 2024      11:49

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Escrever é pensar

Assim que levantamos o olhar do nosso próprio umbigo e das inúmeras armadilhas de entretenimento e comunicação social que nos são continuamente oferecidas, algo acontece. Sentimos que somos testemunhas conscientes, mais do que no passado recente, das atrocidades que milhões de seres humanos na terra estão a cometer e planeiam cometer em detrimento de outros seres humanos. “Como inútil taça cheia, que ninguém ergue da mesa, transborda de dor alheia   meu coração sem tristeza”, é assim que muitas vezes me sinto. Eu esforço-me para encontrar alguns "mas" que me deem uma migalha de esperança e alegria: o que é necessário para experimentar o prazer de formular pensamentos e propô-los aos leitores. Porém, quero continuar tentando, pois acredito que não sobra muito tempo para ações combinadas desse tipo: pensar e escrever.

Não quero usar a palavra "inteligência" artificial, porque ela, como "alma", "consciência" e muitas outras, é ambígua e porque recentemente tem sido usada com muita frequência - creio eu - de forma inadequada.

O ChatGpt é um dispositivo (como outros análogos) capaz de gerar sequências de sinais gráficos (ou seja, palavras) coordenadas e relevantes para um determinado contexto, tópico ou sequência de palavras, por meio de algoritmos.  São procedimentos complexos e muito engenhosos, que usam a capacidade do computador de analisar enormes quantidades de material escrito disponível na Web. Os algoritmos desenham cartografias de campos lexicais e elaboram mapas das associações e interconexões de palavras, em textos que existem na Web. Até agora utilizaram textos escritos por seres humanos, mas em breve utilizarão também os textos gerados por este e outros dispositivos - que encontraram e encontrarão no mundo quase infinito da Internet. Fornecendo algumas indicações ao programa, podemos obter rapidamente um texto coerente e gramaticalmente correto, baseado em uma quantidade incalculável de textos já escritos. Não se trata mais da “autocorreção” que corrige as nossas grafias e sotaques esquecidos.

A História começou com a invenção da escrita. Confiamos as nossas vidas às palavras. Escrever é pensar. Com palavras nos definimos. Confiamos nossos relacionamentos com os outros às palavras. Se uma máquina nos fornece as palavras úteis para comunicarmos, que necessidade temos de imaginá-las, de refletir sobre as palavras adequadas a usar?

O número de textos escritos aumentará enormemente. Porém, não será necessário ler, pois bastará pedir ao ChatGpt que nos dê um resumo do que existe. Desta forma, obviamente, teremos mais tempo disponível para jogar videojogos, ver programas de entretenimento ou desportivos e fazer compras online.

Precisamos da linguagem para pensar, tentar compreender e comunicar – à nossa maneira – nossos pensamentos, humores, sentimentos e sonhos. Delegar a linguagem e a escrita tem consequências. Quanto a delegar os sonhos, tentarei falar sobre isso em um artigo futuro.

Agradeço a Fernando Pessoa, autor de “Dança das Mágoas”, e a Mísia, que a cantou com a sua voz incrível; ainda a Pascal Chabot (professor de Comunicação Social em Bruxelas), que falou recentemente sobre este tema na Bienal de Tecnologia do Politécnico de Torino. Por fim, agradeço a Irene Vallejo, cujo “El infinito en un junco: la invención de los libros en el mundo antiguo” (Siruela, 2019) me forneceu ideias para este artigo.

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Nota do editor: Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular. Médico cardiologista reformado, é apaixonado por lugares estrangeiros e marcados pelo idealista; interpreta este tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.