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literatura

DE ESTÔMAGO CHEIO I

 

“_ O meu amigo Faustino Xavier de Novais conheceu perfeitamente aquele nosso amigo Silvestre da Silva…

_ Ora, se conheci!... Como está ele?

_ Está bem: está enterrado há seis meses.”1

 

Morto de morte falecida, mais propriamente de caquexia, apesar de ir a banhos (de mar) na Póvoa de Varzim, que acabaram em banhos de chuva, assim finou Silvestre da Silva, folhetinista, poeta, filósofo, jornalista e político.

A MARCA D’ÁGUA

No leito da morte, a mulher que tinha vivido mais tempo que todos os que nasceram depois dela, sentia-se pronta a abandonar as dores do corpo físico. Não tinha já nada mais a fazer no círculo que se tornara a sua vida. Deitada na cama, tapada com as mantas que ela própria fizera e tecera ao longo dos muitos anos em que pode trabalhar, custava-lhe a respirar. Os seus olhos azuis já quase brancos até na menina, afetados pelas cataratas tinham dificuldade em ver fosse o que fosse. Viam apenas as sombras que, naquele dia, se movimentavam mais do que em todos os dias anteriores.

SURICATAS

Deve ter sido aí há uns 8 anos. Vivia na África do Sul, então. Há já algum tempo, nos meus anos mais jovens, onde a experiência não era a de hoje nem as imagens que tinha gravadas na mente chegavam ao número das que se guardam hoje. Muitas delas apaguei-as propositadamente, outras por lapso, outras, então, como mera limpeza de ficheiros temporários. A nossa mente tem, de facto, aspetos singulares e, um deles é a nossa capacidade de escolher e de nos permitirmos ser as memórias ou ocultar as mesmas.

O FUTURO DOS LIVROS

Sou um “livrólatra”. Tenho vício em livros. Começo um, devoro e já parto para outros. Não posso evitar. Devo admitir que o momento de pós-leitura é melhor do que a leitura em si, pois passo a diagnosticar os motivos pelos quais o enredo chegou ao clímax. Refletir faz parte dessa arte léxica. Assim posto, meu gostar de livros é condicionado: jamais cederei à literatura digital. A experiência não tem a mesma tenacidade, em minha opinião.

A FOTOCOPIADORA

Tirava fotocópias. Digitalizava documentos. Tirava cópias a preto e branco e a cores. Ao lado, uma mulher operava a fotocopiadora. Tinha resmas de papel na sala, junto dessa máquina, e replicava documentos, fotografias, originais e já os duplicados. A sala onde a cena se passava não era muito grande, tinha o soalho em madeira, em pequenos tacos encerados que tinham já saído e voltados a ser colados.

A CANETA E O ARTISTA

A palavra poética é oportunista, pois permite interpretações. Com uma caneta na mão sou um artista e posso, se me utilizar das ideias certas, estimular multidões. Para quem pratica esse ofício, um dia chega aquele momento odioso em que o erro acontece. Você pega a referência errada, usa uma fonte fraca, ou fracassa, acidentalmente ou não, no português. Aí o Diabo entra em cena.
 

O CÉU AZUL

Do céu azul viam-se as planícies secas do Alentejo. Na imensidão do restolho, já despojado do trigo que nele nascera, estava a terra seca, castanha e dividida entre torrões. Não se viam, na distância do doirado e de uma ou outra interrupção verde e castanha dos sobreiros e azinhos que subsistiam, diferenças. O Sol, esse, difundia calor em toda a planície como se fosse um aquecedor a gás e quisesse deixar as ondas de calor invisíveis a queimarem a pele dos que, a esta hora do dia, se aventuravam no meio do campo.

O ESQUECIMENTO

No monte ermo do meio da Serra do Caldeirão, havia um lugar de que toda a gente se tinha esquecido. Ninguém se lembrava do nome do sítio. Nele moravam ainda duas pessoas às quais o tempo já tinha passado ao lado e não pensava voltar. O monte era longe e o lugar nunca fora perto, nem quando construíram a estrada nova de terra batida.

NOSSO TEMPO

Viro a ampulheta, resta uma hora de vida. Uma hora para o segredo do tempo. Cada grão, uma atitude. Cada ato, uma deidade. Em 60 minutos é impossível mudar o mundo, mas é possível fazer muito. Você pode se ajudar lutando para fazer o melhor. O melhor em direção ao futuro. Voltar é impossível e tudo que aconteceu, aconteceu. O passado congelou para nunca mais retornar ao seu estado líquido.

A VISITA

‘Há visitas que esperamos e acabam por chegar e há visitas que não esperamos e chegam sem nos avisar. Não gosto de chegar sem avisar, nem gosto de chegar tarde. Surpresas também não é muito comigo.’ – iniciava-se assim o discurso do convidado de honra do evento que se realizou na sala de visitas do Museu. E tudo em honra de um quadro pintado há uns anos largos. Não era um quadro muito grande. Era, aliás, o mais pequeno e singelo do pintor que o tinha imaginado e criado.

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