11 Junho 2016      12:40

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SURICATAS

"PARALELO 39N"

Deve ter sido aí há uns 8 anos. Vivia na África do Sul, então. Há já algum tempo, nos meus anos mais jovens, onde a experiência não era a de hoje nem as imagens que tinha gravadas na mente chegavam ao número das que se guardam hoje. Muitas delas apaguei-as propositadamente, outras por lapso, outras, então, como mera limpeza de ficheiros temporários. A nossa mente tem, de facto, aspetos singulares e, um deles é a nossa capacidade de escolher e de nos permitirmos ser as memórias ou ocultar as mesmas.

Porém, sem me desviar do assunto que, incluso na minha memória, procuro registar no papel, não só procurando evitar a limpeza dos ficheiros temporários, mas também que essa breve história desapareça do meu registo histórico, quero contar que vivia, como disse, há 8 anos, na África do Sul e viajei até ao país vizinho, a Namíbia. País lindo, plano e montanhoso ao mesmo tempo, seco e árido, desolador e cheio de uma energia acolhedora. O aeroporto, distante da capital em tudo, deixa-nos antever o deserto que se prolonga.

São os campos áridos, desérticos, tão solitários como as poucas árvores que o habitam que são a Namíbia. Rico no subsolo, a superfície disfarça-se e torna-se pouco interessante aos que ignoram as riquezas escondidas. Não havia, na viagem pela estrada de terra batida que fiz, no longo percurso despido, nu, cru, uma pessoa que esperasse pelo carro. Nem o próprio jipe esperava pela sua sombra e movimentava-se como se fugindo do pó e da sombra que deixava atrás.

No início de um dos vales, dos poucos que apareciam no horizonte, uma grande árvore, talvez tão antiga como a chegada dos primeiros estranhos. Lembro-me desse pormenor e da sua forma de guarda-sol, onde todos nos podíamos esconder do calor. Nós, os quatro ocupantes, o jipe e a sombra do mesmo. Ao longe ouviam-se os prolongados e contínuos sons das cigarras. Era um som que se tornava já parte intrínseca de mim e me fazia sentir em permanente tensão, como se fosse o ruído da eletricidade a passar nos cabos. Enquanto os meus companheiros de viagem fechavam os olhos, adormecendo ao som das cigarras, não consegui adormecer nem desviar a atenção dos montes à volta. Em momento algum, a memória deixou de registar, de modo panorâmico, os acontecimentos e os aspetos em volta da árvore.

Houve, num dos montes, algo que me chamou a atenção. De cor não muito diferente da paisagem, parecia-me que uma pequena imagem se movia. Não certamente um arbusto, pois não soprava uma mínima brisa no deserto e os arbustos não se mexem sozinhos. Levantei-me, agarrando na máquina fotográfica e decidi aproximar-me um pouco mais da elevação do terreno. A imagem mexia-se cada vez mais e, à medida que me aproximava, tornava-se claro o desenho de um corpo franzino, de uns olhos grandes escuros e observadores, de uns braços curtos que se elevavam junto com o corpo, arrebitavam as pequenas orelhas e espreitavam, olhando-me fixamente, desafiando o meu atrevimento em me aproximar. Figura estranha, cada vez mais esticada no ar, olhava-me e, ao mesmo tempo, em movimentos rápidos, olhava tudo à volta, certificando-se que nada seria surpresa além de mim.

Numa síntese, suricata, guarda vigilante do seu grupo, protegia o seu terreno. Era eu que era o intruso, o invasor. Aquela amável, curiosa criatura continuava a olhar-me. Aproximei-me mais, lentamente, para não causar ainda mais tensão do que aquela que ambos sentíamos já e fotografei o máximo que pude os seus movimentos. Ele, impávido, mexia a cabeça como tinha feito até aí. Eu era um predador. Estranho na forma e no feitio e era necessário proteger-se. Só a si, pensava eu, até que, com um ligeiro ruído, atrás de si, se levantaram cerca de uma dezena de idênticos seres, multiplicando o número de desconfiados e protetores.

Senti-me só e desprotegido, eu próprio. Passei de predador a presa e achei melhor permanecer estático, olhando só fixamente todos os animais. Os nossos olhos fixaram-se, os meus pequenos e pestanejantes e os deles, grandes e parados. Percebi os seus medos como eles perceberam os meus e despedimo-nos com o olhar. A batalha de ficar quieto tinha sido ganha pelas criaturas do Kalahari onde eu era um mero intruso, não habituado às condições térmicas, físicas e sociais.

Voltei para junto dos meus companheiros que tinham todos já acordado da sesta e contei-lhes dos suricatas e do nosso diálogo. Acreditaram até à parte documentada das imagens. Do resto, disseram-me apenas que bebesse uma bebida fresca e descansasse na viagem. Assim fiz.

À nossa frente, ocupando o tosco caminho, centenas de suricatas, em posição protetora, esguias erguidas no ar, impediam a nossa passagem e a que liderava o gangue aproximou-se do jipe. Circundou-o e olhou-me fixamente mais uma vez para espanto de todos no carro. No mesmo passo lento, afastou-se e, desaparecendo atrás de um arbusto, despediu-se. Enquanto continuávamos boquiabertos, as restantes suricatas foram dispersando, até o caminho estar livre. O condutor seguiu viagem e nenhum de nós foi capaz de dizer fosse o que fosse.

 

Imagem daqui