4 Junho 2016      09:54

Está aqui

A FOTOCOPIADORA

"PARALELO 39N"

Tirava fotocópias. Digitalizava documentos. Tirava cópias a preto e branco e a cores. Ao lado, uma mulher operava a fotocopiadora. Tinha resmas de papel na sala, junto dessa máquina, e replicava documentos, fotografias, originais e já os duplicados. A sala onde a cena se passava não era muito grande, tinha o soalho em madeira, em pequenos tacos encerados que tinham já saído e voltados a ser colados.

A mulher operava a fotocopiadora replicando documentos. Sabia as funcionalidades todas do aparelho e nunca se enganava nas quantidades. Nunca fotocopiava livros inteiros por causa dos direitos de autor e as fotografias a cores, essas, eram impressas em papel especial. A partir de uma escolha de botões coloridos, fotocopiava frente e costas, e fazia sair as folhas já agrafadas, páginas para os rostos que esperavam atrás do balcão improvisado.

Todos os dias úteis, a mulher entrava às oito da manhã, cabelo de permanente, enrolado e aquecido na cabeleireira, aguentando o dia à custa dos rolos com que dormia. Entrava, pendurava o casaco no cabide, colocava a mala no pequeno cacifo de estilo liceal e vestia a bata. As meias collants aqueciam as pernas, auxiliadas pelo aquecedor a gás, e a saia não subia nunca acima do joelho. Agarrava no espanador de penas e passava-o pela fotocopiadora, pela mesa carregada de livros, de fotocópias e de resmas de papel ainda em caixas de cor irrelevante.

Ligava, de seguida, o botão on e a máquina acendia-se e começava a fazer o barulho de quem se preparava para não mais parar até ao fim do dia. O barulho que fazia, enquanto trabalhava, era reconhecido em todo o lado. Ao estilo de máquina de montagem e processamento, numa fábrica, a fotocopiadora contribuía para algo tão importante como a disseminação do conhecimento. A mulher que a operava, apesar de não ser do seu interesse completo, espreitava sempre que podia o conteúdo daquilo que lhe ia passando à frente dos olhos. Já vira tantas letras, já lera tantas palavras e nunca terminara de ler um texto completo. Não fazia falta. Na sua ideia, juntava tudo no fim e aquilo fazia sentido. Mesmo que misturasse uma receita culinária com os últimos capítulos da filosofia de Kant ou as leis do Diário da República com a carta de amor de um escritor apaixonado, tudo fazia sentido. Não lia um texto até ao fim. Não fazia falta.

A máquina continuava a engolir e a cuspir papel, interrompida só pelo barulho de uma folha mal engolida. Apitava, piscava luzes vermelhas e conseguia ser acarinhada pela mulher que se mantinha, de pé, ao seu lado. Quando acontecia, do lado de lá do balcão, as caras alteravam-se e umas vezes o desespero substituía o sorriso, outras a preocupação transformava a descontração dos clientes.

A porta abria sempre às oito e meia quer o dia estivesse com Sol quer a chuva inundasse as ruas da velha cidade de Évora. A fotocopiadora era já antiga. Um dia precisaria de ser substituída como a mulher se reformaria também. Ambas sabiam que seguiriam caminhos diferentes e o seu companheirismo de dias úteis e de dias úteis sem fim deixaria de existir como até aí. Uma continuaria a ter memória desses dias. A outra não mais acenderia as luzes e não recuperaria nada da dela.

É engraçado como a nossa vida se assemelha a máquinas, por vezes, e mais curioso é o facto de nos replicarmos nos nossos gestos como o fazem as fotocopiadoras. Não menos o é o facto de todos os dias termos momentos a preto e branco e outros a cores. E, sempre, como nos olhos da mulher que manobra a vontade da fotocopiadora, as receitas se misturam com a filosofia e as leis da vida com as leis do amor.

Às sete da tarde desligam-se as luzes e a porta fecha-se. 

 

Imagem daqui