21 Maio 2016      10:36

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O ESQUECIMENTO

"PARALELO 39N"

No monte ermo do meio da Serra do Caldeirão, havia um lugar de que toda a gente se tinha esquecido. Ninguém se lembrava do nome do sítio. Nele moravam ainda duas pessoas às quais o tempo já tinha passado ao lado e não pensava voltar. O monte era longe e o lugar nunca fora perto, nem quando construíram a estrada nova de terra batida.

Naquele monte ermo, no meio da serra, morava o casal Memória, Ramira e Esquecido. No meio do monte, uma casa de pedra antiga, com janelas pequenas e porta igualmente pequena, mas feita de paredes grossas. Em xisto, mantinham a cor natural. Só a porta estava orlada a cal branca. A porta era de uma madeira antiga, manchada pelas gotas da chuva, e tinha um pequeno postigo que servia para Ramira espreitar as árvores, as cabras e os vales, em frente, nos dias de Sol e nos dias de chuva. O curral ficava mais abaixo, pegado ao forno onde Ramira cozia o pão todos os quinze dias. Lá dentro, durante o resto do tempo, ia guardando carqueja e outra lenha que servia para manter a lareira acesa para curar os enchidos.

A casa por dentro era ainda mais escura do que por fora. Não havia muitas janelas e as telhas não deixavam entrar a claridade. Só o que iluminava as noites de Ramira e Esquecido eram as luzes dos candeeiros a petróleo e as chamas da lareira quando acesa. A memória dos Memória era longa e não havia uma pedra e uma imagem daquele retrato que não lembrasse alguma coisa aos dois. Havia, no meio do esquecimento, que era aquele lugar, tanta coisa lembrada, entre os que nunca se esqueceram.

Naquele monte isolado, onde os Memória passavam as noites, surgiu um dia um filósofo vindo lá de longe, da cidade grande que os dois nunca tinham visto ou ouvido falar. Ramira, desconfiada, desde logo interrogou o pobre homem até à exaustão. Preocupada que fosse um desses bandidos que anda a enganar os esquecidos com a troca dos euros ou com a Segurança Social, Ramira não lhe deu a confiança contada. Esquecera-se da última vez que alguém chegara ao monte onde adormecia e acordava todos os dias, sempre com o mesmo pensamento de solidão dual, sua e do seu marido. Esquecido não era tão rigoroso nas abordagens, mas ainda bem que a esposa o era. Nunca é de mais ser cauteloso.

O filósofo apresentou-se, a si e às suas credenciais, e sentou-se no poial, puxando de um cigarro de enrolar e de um pequeno livrinho de capa preta, e perguntou coisas sobre a vida, a existência, a memória - não o casal -, e o esquecimento. Nenhum dos dois se lembrava muito bem do que tinha acontecido nos tempos mais próximos. A Memória era seletiva e desconfiada. Nem assim o homem estranho, de barbas grandes e óculos, desistiu. E continuou dizendo ser filósofo e Ramira ripostou perguntando o que era isso e ele respondeu.

Um filósofo é uma pessoa que pensa sobre as coisas e sobre a existência das coisas. Ramira insistiu: Ah!... É uma espécie de poeta como esses que se ouvem na rádio a cantar o baldão e que fazem modas a despique. Era isso.

O homem ficou contente com as respostas filosóficas do casal, mais da mulher do que do homem que era Esquecido, e juntou-se a eles num naco de pão com chouriço e num copo de vinho seguido de um medronho. No fim da bucha, ninguém se lembrava muito bem do que tinham falado, nem do sítio exato onde ficava o monte. Não fora o GPS e o filósofo não voltava ao local de origem. Ninguém sabia dizer do que falaram. O esquecimento fora perspicaz na abordagem e todos se sentiram aliviados por se lembrarem de nada.

 

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