19 Fevereiro 2022      12:47

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Argila que se transformou em peça de cerâmica

Quando os tempos difíceis chegaram às planícies e serranias do Alentejo, muita coisa mudou. Muito do que é tido por certo e garantido em tempos prósperos, para aqueles que os conhecem, quando se desmorona, torna-se agreste e muda-nos por completo, por fora, por dentro e a nossa geometria altera-se.

Para aqueles que nunca conheceram a prosperidade, não será improvável que considerem regular e normal as dificuldades, a falta de recursos, a fome e esse desconforto inerente. Não dizemos e muito menos consideramos que este convívio com as dificuldades normalize a situação ou torne a mesma em algo aceitável.

Tempos difíceis, ou tempos de fome como são conhecidos no Alentejo, são também tempos de transformação. Essa mesma transformação fez com que a argila se transforme em cerâmica.

Nesse tempo remoto, que espero não volte tão cedo, famílias e famílias tão numerosas que uma só divisão mal servia para acomodar todos em colchões dispostos aleatoriamente no chão, era necessário trabalhar por um punhado de farinha que pudesse fazer um pão que alimentasse toda a família. Assim, nesses dias, naqueles ribeiros em que a água também parecia escassear, havia um lugar onde uma nascente teimava em jorrar porções de água, ainda que pequenas. Essas eram, porém, suficientes para aquilo que alguns, especificamente um homem e uma mulher de meia idade, ambos chefes da mesma família. Descobertas as possibilidades daquele recanto, o barro parecia ser mais atrativo do que nunca. A argila teria possibilidade de se tornar em algo que, em tempos de recessão, nunca poderia ambicionar. A argila queria ser cerâmica e, sonhos loucos, talvez porcelana. Não eram tempos de tamanha ambição e, assim, ficar-se-ia por uma peça de cerâmica útil, igual ao seu tempo.

O processo começou a ser testado pela família, com muitos retrocessos e poucos avanços, até ao dia em que da roda saiu uma peça aceitável e que se podia repetir, utilizando a tal necessidade que aguça o engenho. O processo foi melhorando em tempos de dificuldade. As peças, fruto da experimentação, transformavam-se em cacos atrás da parede escondida do monte. As peças que se aproveitavam foram também crescendo e amontoaram-se a ponto de vender no mercado e trazer mais um punhado de farinha e mais um bocado de carne em dias de festa.

A argila transformou-se em cerâmica, não de forma gratuita, mas num longo processo de crescimento e de provas, tal como todas as famílias em tempos difíceis.

No Alentejo, a cerâmica vem do produto bruto, da argila, tal como aquilo que alcançamos vem do nada, ou do muito pouco que existe.