3 Janeiro 2016      11:36

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PALIMPSESTOS

"TEXTURAS"

Há já algum tempo que pretendo escrever sobre as relações transtextuais porque são, a meu ver, a pedra basilar da Literatura, em virtude de possibilitarem o estabelecimento de relações complexas e intrincadas entre os textos. Apesar de ter sumariamente abordado os hipertextos noutra crónica dedicada à Literatura Popular e de ter referido as relações de intertextualidade ainda noutra em que se falava de chapéus, na verdade, não sabia exatamente como introduzir o tema. Mas eis que ontem, tendo a televisão ligada enquanto fazia umas pesquisas na internet, não pude deixar de ouvir a deixa de uma personagem da série “Foi Assim que Aconteceu”, que, sofrendo de pediculose, afirmou que tal como Deus enviou uma praga de gafanhotos para o Egipto, enviou-lhe os piolhos, fazendo com que fosse despedido, com o fim de livrá-lo da servidão empresarial. Neste caso, a personagem faz uma alusão a um episódio da Bíblia, comparando-o com um episódio infeliz da sua história capilar, pressupondo que todos percebem o paralelo. Segundo a teoria de Gérard Genette 1, instaura-se, assim, uma relação de intertextualidade entre a Bíblia, o texto primeiro ou hipertexto, e o argumento da série, neste caso o hipotexto.

Existem ainda pelo menos mais quatro relações transtextuais, no entanto, o que nos interessa, de momento, é a transposição de textos, nomeadamente, a referência e a reescrita. Podemos, então, falar de palimpsestos, na medida em que, citando Genette, “Um palimpsesto é um pergaminho do qual se raspou a primeira inscrição, de modo a traçar-se uma nova, que não a esconde completamente, de maneira a poder ler por transparência, o antigo sob o novo”. Portanto, dito de forma mais simples, um palimpsesto consiste na reescrita de um texto preexistente.

Genette dá o exemplo de Ulisses de James Joyce, cuja história, originalmente narrada por Homero, é contada de outra forma pelo escritor irlandês ou ainda o exemplo da Eneida de Virgílio, que conta a vida de Eneias à maneira de Homero. Temos, assim, dois tipos de hipotexto, a partir de um mesmo hipertexto, no entanto, no primeiro caso, o texto sofreu uma transformação e, no segundo, foi alvo de imitação.

Podemos referir outro exemplo de transformação: “Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões Contados às Crianças e Relembrados ao Povo”, adaptados em prosa por João de Barros, em que a história, no fundo, é a mesma da obra original, sendo, porém contada de uma forma mais acessível.

Contudo, é de salientar que essas relações transtextuais não são estanques e é, de facto, possível encontrar obras em que se fundem esses dois tipos de conexão palimpséstica. Assim, na obra Terra Papagalli, dos brasileiros José Roberto Torero e Marcus Aurélius Pimenta, é recontada de forma humorística a viagem ao Brasil de Pero Vaz de Caminha, pelo prisma de um jovem português, degredado para as Américas por se ter envolvido fisicamente com uma moça de boas famílias. Na obra, Cosme Fernandes, o degredado, narra a história da sua vida, chegando uma parte do livro a ser um diário de bordo, relembrando o relato do próprio Pero Vaz de Caminha e estabelecendo assim uma relação de imitação relativamente ao hipertexto. Porém, a relação de ambos os textos não fica por aí, na medida em que o jovem embarca no navio de Pedro Álvares Cabral e convive com ele, exatamente como Pero Vaz de Caminha. Deste modo, a transposição das duas histórias transforma a narração primordial numa nova, desconstruindo assim a primitiva e complementando-a.

Observamos que existem hipertextos que sofrem transformações e/ou imitações, aquando da criação de novos textos derivados dos primeiros. Todavia, não podemos esquecer que, tal como dissemos, se essas relações não são herméticas, o hipotexto tampouco é um texto de segunda. Pelo contrário, as relações transtextuais mantidas com o hipertexto enriquecem-no e, por outro lado, nada o impede de vir a ser, por sua vez, não fechando o círculo, mas deixando em aberto a espiral da transtextualidade, um hipertexto.

 




1 Genette, Gérard, Palimpsestes – La Littératura au Second Degré, Coll. Essais, Édition du Seuil, 1982, Paris.