23 Maio 2015      13:14

Está aqui

O MENINO E O CROCODILO

No momento em que, à meia-noite, do dia 20 de maio de 2002, o relógio dava doze badaladas, num campo estendido entre três lagoas, ouviam-se os festejos do nascimento. Nascia um novo dia e nascia um novo país. Nesse momento, Kofi Annan declarava a restauração da independência de Timor-Leste. A Oriente, as lágrimas daqueles que lutaram misturavam-se, nos rostos, com os sorrisos do nascimento e, todos, unidos em torno de um ideal, sorriam e choravam, olhando a bandeira que se elevava no ar.

Recordo-me, e gostaria de contar-vos, a propósito da restauração da independência, de uma breve história, com tonalidades de lenda, que me foi contada pela voz envelhecida e sábia de um lian nain. É a história de Timor-Leste e de um menino, nos seus sonhos de crocodilo, partindo em busca do disco dourado que existe no fim do mar. Encontraram-se, nas Celebes, por acaso. O menino descansava à beira de um rio que deslizava para o mar, enquanto observava as maravilhas que o seu olhar conseguia avistar. O menino pensava e sonhava, olhava o Sol que tinha acabado de nascer e pensava que aquele disco, aquele disco dourado era o seu sonho e que um dia iria alcançá-lo. Todos temos sonhos na nossa vida, pensava. Todos os temos e todos os devemos viver. Ambicionar chegar até eles e alcançá-los é um direito nosso e ninguém tem o direito de nos tirar esses sonhos, pensava o menino que, um dia, seria avô, na sua inocência de criança, guarda em si todos os sonhos do mundo como já dizia Pessoa. 

Sentado na beira do rio, o menino adormeceu com os raios de sol a aquecerem-lhe as faces e o olhar sonhador. Dormiu quase uma manhã. Acordou com o barulho de alguém ou algo que se tenta libertar e não consegue, pois as forças tinham-no abandonado. Era esta a dor de um velho crocodilo, faminto, que tinha abandonado o mar, procurando em terra o que nela não encontraria também. Preso, velho, cansado e sem esperança, lutava, ainda, os últimos momentos contra um banco de areia que o tinha capturado e, imóvel, faltava-lhe a voz para pedir ajuda. Acordando de um sono pouco profundo, o menino ouviu os sons do crocodilo e percebeu-os. Esta história, que se conta ao amanhecer, aconteceu no tempo em que os animas falavam, ou não falavam, mas as pessoas, ainda assim, conseguiam entender o que diziam.

O menino correu em sua ajuda e, sem conhecer o tipo de ser que ajudava, não teve medo em ajudar o crocodilo e, usando toda a sua força e valentia ingénua, salvou o crocodilo da sua morte anunciada. O crocodilo respirou e ficou muito grato ao menino pois nos seus olhos viu a juventude e esperança que perdera. Nos olhos do menino, o crocodilo viu o amanhecer do Sol a repetir-se, como acontecera horas antes. E o menino ficou feliz por o ter ajudado e, olhou o crocodilo que lhe ofereceu uma viagem, tem troca, pelo mar. O menino aceitou e disse ao crocodilo que sonhava. Todas as crianças sonham, sabia o crocodilo e sabia também o menino. O crocodilo ouviu o pedido que era encontrar o disco dourado no fim do mar e aceitou fazer parte do sonho do menino que era a semente de um país.  

Então, cansado de olhar o infinito, o menino sentou-se nas costas do crocodilo e, acordando num pacto de não-agressão, viajaram pelo mar, flutuaram nas águas quentes do mar de Java, circundaram os mares de Bali, Banda e procuraram, procuram mas nunca encontraram o disco dourado… Cada vez que pensavam estar perto, o disco fugia ou escondia-se e, em seu lugar, surgia como que um espelho, uma luz que não era verdadeira, mas o reflexo do disco que não estava lá. Passaram-se muitos anos a navegar nos mares que, nessa altura, eram quase vazios e a idade dos dois passou tão veloz como os anos. Falaram pela última vez e o crocodilo disse ao menino, numa voz rouca e cansada, que não conseguiria dizer mais palavras e seria o último a falar. A partir daí, nunca mais os crocodilos falaram com os meninos, nem com os homens. Sem voz e sem comunicação, como eles, tornamo-nos estranhos e não nos conseguimos entender nas nossas vontades. Há quem diga que, por isso, também temos medo dos crocodilos e devemos, com toda a razão, diria eu, ficar bem longe deles, pois o pacto que outrora houve e o encontro entre o avô e a semente foi anulado quando ambos deixaram de falar. Quando fechou os olhos, o crocodilo transformou-se em ilha e deu uma casa, um lugar para viver e ver o amanhecer mais de perto, ao menino, que é o antepassado de todos os timorenses. O crocodilo adormeceu e fez-se ilha. Está ainda deitado, calmo, imóvel nas águas quentes do Índico, marcando a separação com o Pacífico. O avô adormeceu neste lugar, a semente que era o menino aqui ficou a olhar o Sol e a envelhecer a cada amanhecer. Por isso, porque um menino sonhou e cresceu e não desistiu do sonho, nasceu Timor. E nasceu aqui. Timor é onde o Sol nasce, é a terra do amanhecer.

É esta a história do menino, a história de um lugar onde o dia amanhece mais cedo do que os sonhos. É aqui que, ao acordar, o Sol flutua sobre as nuvens e aparece atrás das montanhas, ao longe, ainda hoje lembrando ao menino os seus sonhos e o disco dourado que sempre o espera e acompanha.