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NÓMADA

O som do aspirador dissipava-se, com a distância. O som da água que corria num riacho longínquo tornava-se cada vez mais efémero e desaparecia ela também. Pedro voltava a si e ao comboio onde estava. A carruagem era tão antiga que os bancos eram em madeira já percorrida pelas traças. Nem o envernizado dos bancos as impossibilitara de viajarem também naquela carruagem. Pedro abria os olhos lentamente para observar, pela janela, o rio que o acompanhava e ao comboio que se deslizava, empurrado pela força do vapor.

FRIOZINHO

Parecia que estava no Pólo Norte e que à sua volta, tudo o que a rodeava era branco e frio. Neve. Muita neve e um vento gélido que atravessava a espinha e, chegado ao tutano, metia-se por ali acima e congelava o cérebro. Assim se sentia ela naquela manhã. Que briol, pensava. Tanto frio que faz nesta terra e tenho de sair do quentinho às poucas da manhã para me por a caminho do trabalho. Se houvesse um nevão jeitoso, talvez conseguisse ficar em casa por não conseguir sair à rua. Mas não havia nada disso.

SAUDADE

Um escrever sem pressas, uma palavra que se desenha como as nuvens se movimentam no céu, sem receio de não chegar a tempo. No céu azul, enquanto dura o dia, não há pressa, não há tempo. Na noite, com as estrelas, que se mantêm no mesmo lugar, vejamo-las seja de onde for, não há pressa, não há tempo.

TEORIA DA GRAVIDADE

Era muito grave. Essa era pelo menos a teoria que corria entre os que se atreviam a falar sobre o assunto. Tudo parecia uma longa história encoberta que caía a cada dia que passava, à medida que se aproximavam momentos decisivos, à medida que se consumiam os últimos troncos de lenha na salamandra que aquecia a casa naqueles dias de inverno. Não nevava. Nevara algumas vezes, poucas, nos últimos 100 anos. Antes disso não havia registo.

O RAIAR DA AURORA

Descansado, entre as folhas e as gotas de orvalho, em cima de uma árvore estranha no meio de outras tantas, o pisco que estava em cima daquele galho meio seco, dormia ainda. De peito vermelho alaranjado, quase como se o sangue viesse das bicadas que talvez tivesse dado nas laranjas das redondezas, mas talvez não fosse assim. A camisa branca estava perfeita. O casaco, esverdeado, protegia-o dos primeiros frios de Inverno que chegara há poucas semanas.

FIGOS E TANGERINAS

Na semana passada, escrevi sobre pastéis de nata e sobre pastéis de bacalhau e sobre coisas. Hoje, a chuva já chegou e a terra já absorveu a água que tanto ansiava, livrando-se da secura que faz com que as goelas se agarrem umas às outras e se tornem uma só. A chuva trouxe às plantas e à terra a cor e a força que precisavam para germinar.

COISAS

Hoje é dia de escrever sobre coisas. Não é porque não me apeteça escrever uma longa crónica sobre coisas longuíssimas, como serpentes ou fitas métricas, mas porque me apetece escrever estas coisas. Sendo alentejano, gosto de falar de coisas dizendo tudo sem dizer nada. A minha avó, quando falava de alguma coisa, falava de o coiso ou a coisa. Referia-se a tudo, sem especificar exatamente o que quer referir. Mas hoje é dia de coisas. Ora vamos lá.

FIASCO

Drumbliava entre drumbles e brumbíades. À noitinha, quando já não se via nada, saía da toca onde se escondia e preparava-se para fazer as malandrices que fazia quando as pessoas começavam a ver menos e algumas a fechar os olhos. Era uma criatura muito matreira, que poucos tinham visto mas muitos tinham já ouvido falar, amplamente, diria eu. Era de uma espécie que só há pouco tempo os cientistas conseguiram identificar – Drumbliofes agudus mas era conhecido na gíria humana como Fiasco. Havia unanimidade em relação a dar-lhe esse nome.

LEILÃO

A sala estava cheia de gente e de coisas. Tanta gente e tanta coisa que as luzes faziam parecer ainda mais coisas e mais gente no mesmo sítio. Era noite de leilão. Nessa noite, as coisas eram muito diferentes do habitual. Quando, naquele salão grande, onde a única presença habitual eram os enormes candeeiros pendurados do tecto e as mesas vazias. Os candeeiros nos dias em que não era dia de leilão, estavam habitualmente apagados, escondendo a sua grandiosidade.

O DIA EM QUE ACABOU O FACEBOOK

Naquele dia, uma sexta-feira treze, dia de azar para muitos, o Ti António, homem octogenário mas todo moderno nestas coisas da internet, levantou-se cedinho e dirigiu-se ao computador portátil que estava em cima da mesa, ao lado da garrafa de vinho caseiro, do pão e do presunto que tinha sobrado da ceia do dia anterior.

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