2 Dezembro 2017      12:59

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FIGOS E TANGERINAS

Na semana passada, escrevi sobre pastéis de nata e sobre pastéis de bacalhau e sobre coisas. Hoje, a chuva já chegou e a terra já absorveu a água que tanto ansiava, livrando-se da secura que faz com que as goelas se agarrem umas às outras e se tornem uma só. A chuva trouxe às plantas e à terra a cor e a força que precisavam para germinar.

Nessa chuva, nas águas que deixaram as nuvens e rumam aos rios e ribeiros, pelas encostas abaixo, deleitam-se os olhos dos agricultores, dos animais e das plantas, se os tivessem. Nessas encostas choram os sobros, as oliveiras, os medronheiros. Têm como lágrimas as pingas que a chuva lhes dá e que lhes limpa o pó acumulado durante meses. Em tantos casos por esses quilómetros fora, as cinzas do que o fogo levou.

Cá, chora uma velha figueira que seca, já não dá figos mais este ano. Aqueles que deu, criaram-se à míngua, sem água que bebessem as raízes a levassem até eles os troncos e os ramos. Chora a oliveira que tem as azeitonas secas e a produção estragada. Quase não vale a pena, este ano, apanhar essas azeitonas cujas peles, agarradas ao caroço, por muito que se esprema e esmague não dão azeite que transforme o paladar e o gosto dos alentejanos.

No fundo do monte, choram as folhas da tangerineira, que ganhou o nome por vir do norte de África, onde a ideia que temos é, já de si, seca e de deserto. É de lá, de Tânger que as laranjas chegam e, com elas, mais pequenas, as tangerinas doces. De pele finíssima, agarrada ao sumo, transforma-se em doçura na boca do apreciador. As mãos ficam cheias do seu cheiro. O que comemos da tangerina entra-nos antes pela pele das mãos quando as despimos.

Os figos não, esses deixamo-los secar para, meses mais tarde, poder saborear em seco aquele doce que resta do tempo que passa. Talvez possamos pensar que nos tornamos mais secos com o passar do tempo. A nossa pele transforma-se como aquela dos figos. Vamos secando, nós homens, como secam os figos, sem chuva, sem água. O nosso doce jovem e a nossa vibração vai ficando mais mirrada como os figos. Dos figos em jovem, fica-nos o leite amargo que os agarra à mãe figueira e que nos marca também a pele como as tangerinas. E no ventre das plantas que agora se lavam, a água corre como aquela que se alastra nos carreiros do monte.

Da chuva falamos, entre figos e tangerinas. Entre as cores das figueiras, em tons de verde, no colorido das tangerinas, em tons laranja. Entre os troncos acinzentados que são a força das folhas e do fruto e das flores, as gotas de chuva que, transparente chegam às raízes e sobem aos ramos.

Caminhamos no sentido dos rios e dos mares, avançamos no sentido do vento, deixamos que nos leve, com o sabor do doce dos figos e dos gomos das doces tangerinas. Comemos e apreciamos a fruta sem pensar muito bem de onde vêm. Conhecemos o conceito da fruta, de vê-los aglomerados no cesto, de apanhar diretamente na árvore sem olhar ao que os agarra à árvore de que dependem. Conhecemos o sabor doce, evitamos o sabor amargo e o cheiro que nos acompanhará do leite amargo que liga o filho à mãe, do odor que alimenta a tangerina, a partir da árvore.

Andamos, como o fruto, sem o saber, agarrados às raízes e delas sentimos o cheiro que não reconhecemos. Com o tempo, deixamos de ver o doce que há em nós mas apreciamos ainda assim aquele dos frutos. Tornamo-nos figos secos quando passamos demasiado tempo se absorver as águas do tempo.

Quando essas águas não caem, tornamo-nos ainda mais secos e continuamos a pensar no dia e na chuva. E no dia em que chegará, sem saber que o ciclo se repetirá e que os milhares de gotas são tantas quanto os pensamentos a desejá-las. Os que da terra vivem, olham para o céu e já não precisam verter as lágrimas que a chuva substituiu. Os que da terra vivem, como as figueiras e as tangerineiras, agarram-se ainda mais à terra que, já húmida, não deixa que as raízes se engasguem no pó que, empurrado pela chuva, abandona as folhas e os troncos.

E nos céus que de azul se transformam em cinzentos como os troncos destas árvores, sopra o vento doces melodias.