16 Dezembro 2017      12:41

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TEORIA DA GRAVIDADE

Era muito grave. Essa era pelo menos a teoria que corria entre os que se atreviam a falar sobre o assunto. Tudo parecia uma longa história encoberta que caía a cada dia que passava, à medida que se aproximavam momentos decisivos, à medida que se consumiam os últimos troncos de lenha na salamandra que aquecia a casa naqueles dias de inverno. Não nevava. Nevara algumas vezes, poucas, nos últimos 100 anos. Antes disso não havia registo.

Dada a gravidade do problema, o inspetor, homem astuto e sisudo que se vestia sempre da mesma maneira, andava cismado naquilo. Preocupado com a atual situação dos acontecimentos, tirou o casaco florido, ficando-se com a gravata, também ela florida, em nada condizente com o resto do traje e com sapatos de biqueira larga, e sentou-se na cadeira ríspida e pôs os braços na cabeça, ligeiramente inclinado para cima da mesa. Fechou os olhos e respirou um pouco, inspirou e expirou. Tirou esses segundos para pensar e chegou a algumas conclusões que nunca saberemos pois ficaram-lhe no pensamento e não foram nunca traduzidas na forma oral ou escrita.

Passados esses segundos, ainda sob a gravidade do problema e com a teoria em mente, o homem encheu o peito de ar outra vez e suspirou. Estava preparado. Agarrou na pasta novíssima, onde guardava uns papéis organizados e separados com post-its amarelos, escritos e rasurados, e um livrinho de notas. Tinha também uma calculadora eletrónica que, pensamos, faria as contas a si e à vida. O homem tinha na cabeça as teorias todas, junto com uma cicatriz, resultado de uma investigação que decorrera há muitos anos, quando ainda não tinha a experiência e não era tão astuto quanto é agora. A idade traz essas coisas da astúcia, da experiência, dos planos bem elaborados e das dores nas costas, nas articulações, da ciática e do reumático. Artroses, também. O inspetor tinha essas coisas todas, além das teorias da gravidade. Essa, a gravidade, vem também com a idade, especialmente no peso da pele e do corpo que começa a descair com a passagem do tempo.

Embora assim fosse e o inspetor sentisse todas essas formas de peso, tinha, naquele dia em que se sentou na mesa, uma tão grande vontade em resolver a charada que tinha chegado dois dias antes. Era urgente resolver a teoria, expor a conspiração que se gerara em redor do envelope que lhe chegara às mãos com o pedido de ajuda. O envelope, com impecável aparência dizia apenas GRAVIDADE na parte frontal. Estava lacrado e alguém o pusera debaixo da porta do apartamento pequenino onde o inspetor morava. Vivia na Rua do Cano, em Évora, numa casa que, no rés-do-chão, tinha só uma entrada que dava para umas escadas estreitas. Em baixo moravam outras pessoas que não conhecia. Morava por cima, num apartamento de um quarto, com uma casa de banho pequenina, uma cozinha estreita, uma salinha de aspeto humilde mas bem arranjado e, na habitação, o quarto era mesmo a maior divisão.

À mesa fazia contas, olhava para os documentos todos e via neles respostas a perguntas que não tinham sido feitas ainda. Toda a gente lhe admirava e gabava esse talento. À frente de tudo, a carta com as pistas para a resolução da teoria da gravidade. Dava voltas à cabeça e sorria. Dava voltas aos papéis e suspirava. Tudo parecia encaixar-se e, ao mesmo tempo, tudo deixava de fazer sentido.

O que seria que aquilo tudo significava, se significava alguma coisa? A janela em frente dava para uma estátua, num jardim, à frente de duas árvores. O inspetor moía a cabeça. A resposta tinha de estar ali.

Dois segundos depois, mais uns números inseridos na calculadora e a resposta já tinha fugido outra vez pela janela, juntando-se às folhas que o vento levantava do chão, naquele jardim, com uma estátua. Continuava entretido. Preocupado. Empenhado na resposta. E nada, logo a seguir a parecer que tinha tudo. O inspetor sofria por não conseguir dar com a solução. Lá fora, no jardim, a estátua, a árvore e o vento que soprava as folhas. Atrás da estátua espreitava um jovem escondido do homem e na árvore, também escondida, uma jovem. Olhavam-se com ar conspiratório e riam-se. A sua partida escrita na carta iria manter o homem entretido uns bons dias, até que arranjassem outra coisa para se distraírem.

Lá dentro, o inspetor continuava, com ar grave, a tentar resolver o que não tinha qualquer sentido, nem nunca teria.

 

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