31 Março 2018      12:26

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Marmita

Se na semana passada escrevi sobre o mar, esta semana é tempo de falar da marmita. Pequeno objeto que pode assumir formas tão diversas, do arredondado ao retangular, é algo em que não pensamos muito. Ninguém teve tempo ou quis, ainda dissertar sobre a marmita. A ideia de ter falado do mar na semana passada levou-me a filosofar, indiscriminadamente, sobre a marmita. Não tanto sobre o seu uso mais comum, mas pelas suas especificações técnicas, sobre a sua essência, sobre o seu percurso histórico até ao dia de hoje e até pelas transformações e pelos ataques, na minha visão, que lhe tiraram as virtudes. É a evolução, dir-se-ia.

Lembro-me da marmita desde pequeno, quando nos montes e nos campos, os homens e as mulheres iam para o trabalho e era preciso levar o almoço, o rancho, ou os pedaços de carne de porco. No almoço, muitas vezes, o cozido de grão que o esmalte mantinha quente e enchia o estômago na longa jornada dos homens e mulheres que nos campos faziam sobras à torreira do Sol.

As primeiras marmitas eram de esmalte, umas mais azuis, outras mais claras, mas todas elas cobertas por um esmalte que as tornava únicas e preciosas, além de manter a comida quente. Não que o Sol, ele próprio, não tratasse disso. Os homens e as mulheres, junto com o taleigo, levavam a marmita, o pão de cinco dias ou oito, as facas de bolso e os garfos e as colheres. Os homens e as mulheres levavam também a força do trabalho e a fome, para a qual a marmita era a melhor companheira.

Se as marmitas falassem, seriam gerações e gerações de conhecimento. Se as marmitas tivessem olhos e fossem máquinas fotográficas, teriam registado tantos olhares e tantos momentos em que o sol e a chuva se encontraram. Mas as marmitas nem falam nem têm olhos. Têm só a única tarefa de manter o alimento do homem e da mulher cujas mãos são ásperas e têm gretas, ganhas pelo trabalho que fazem no campo.

Era o esmalte das marmitas que as tornava únicas e, ao mesmo tempo, pouco práticas. E depois, alguém inventou a marmita térmica. As primas, antecessoras, de esmalte, quentes e frias ao mesmo tempo, enciumaram-se e saíram de cena. Deixaram de estar tanto em voga. Estas novas mantinham a comida mais quente e, no trabalho, ainda que o Sol queime mais do que o calor que a marmita guarda, é preciso manter o rancho quente. É preciso manter o estômago contente para que a força dos braços e da cabeça sejam ainda mais resistentes.

E nisto, alguém teve a ideia de inventar as marmitas de plástico a que, pomposamente, chamaram de tupperware. Para elas, até reuniões se faziam, compravam e vendiam-se estes objetos, que, em minha opinião, nada se aproximam da antiga e saudosa marmita de esmalte. Coitada, caiu em desuso. Mas as reuniões do tupperware passaram a ser um sucesso e a pobre marmita era agora objeto de convívio social. Passou do campo em força para a cidade. Já lá existia, pois bem, direis vós, os homens e as mulheres já levavam almoço para a construção. Os homens e as mulheres já comiam. Os homens e as mulheres já davam utilidade à marmita.

A marmita hoje tornou-se fina e massificou-se, como tantas outras coisas. Estas, na sua grande maioria, não registam histórias nem ideias. Muitas são descartáveis e as outras são transparentes e inócuas, deixaram as histórias do campo e da cidade e passaram a ir ao micro-ondas e à máquina de lavar louça. Pouco vêm o Sol e se debaixo dele passassem dias, talvez até derretessem. A marmita de esmalte ri-se de tudo isto e, quando isso acontece, até o testo parece sorrir, ou talvez seja só má colocação do mesmo.     

 

Imagem de leiloesbr.com.br