21 Outubro 2017      10:09

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SUAR AS ESTOPINHAS

"PARALELO 39N"

Eram duas cegonhas. Moravam ali a seguir a Castro Verde no caminho que vai para Aljustrel, antes do Carregueiro. Moravam no mesmo ninho em cima de um poste de pinho que servia de apoio às linhas do telefone. Alguém se tinha lembrado de pôr lá uma forma de segurar os ninhos e este casal de perna-longa, recém-casados, cegonho e cegonha. Conheceram-se há muito tempo, o seu falar era tão distinto quanto as longas patas e pernas ainda mais compridas, quase que como a fazer concorrência ao seu longo bico. Tudo era por um motivo e esse motivo confundia-se com a essência dos casais de cegonhas. Penas brancas e pretas, traçavam os céus azuis entre as diferentes casas de verão.

A caixa de correio das cegonhas ficava uns quilómetros logo a seguir a Castro Verde, mesmo à beirinha da estrada que quase não tinha curvas. Era uma estrada estreia e interrompida pela ondulação dos terrenos que, sendo lombas naturais, o alcatrão não cortava. Nunca recebiam cartas mas estava lá um número no poste e uma caixa de correio ao lado. Talvez não fosse da casa da cegonha. Talvez fosse de outra casa qualquer mas as aves gostavam de acreditar que era delas e só delas.

Ora, também toda a gente sabe que as cegonhas têm várias casas de primavera e verão. Ora aqui pelas zonas deste nosso Portugal, ora pelas áreas do Norte de África. Não eram muito diferentes uma da outra. Era uma maçada. Tinham de fazer obras ano após ano. Era muito cansativo e desgastante para a cegonha que era ave fina. Mas lá fazia o esforço e as coisas compunham-se.

Um belo dia de primavera, num mundo não longínquo, mas distante do das cegonhas, em que as ervas já tinham o tapete estendido à alta sociedade. Tapete às cores, entre o amarelo, o púrpura e o vermelho, via-se ao longo de tantos e muitos quilómetros. Cá em baixo passava uma família de carroça. Mãe, pai e bebé. O bebé tinha umas faces assim bem rosadinhas, olhos azuis tão brilhantes que pareciam safiras azuis claras. Era bonito o gaiato! E estava na carruagem, num belo cestinho, olhando o seu azul, que fazia reflexo.

Lá de cima, espreitando da janela figurada da casa, a cegonha, apaixonou-se pelo bebé, e tipicamente história de cegonha que não se contenta com o possível e que dá nome à expressão típica de “suar as estopinhas”. Cegonha teve um momento de falta de lucidez e decidiu raptar a pobre da criança que estava sossegada, debaixo da árvore, à beira da estrada, dentro da carroça. Sem nada dizer ao cegonho, que não aprovaria tal comportamento desviante, pois toda a gente sabe que as cegonhas trazem bebés e não que levam. Esta decidiu levar.

Sai do ninho desamparada, já transpirando nas penas, bico já aberto e a fazer pontaria e descendo em queda quase vertical, apontada ao pano que envolvia o bebé. Tinha de ser assim para conseguir levantá-lo. Escreve-se também assim a narrativa para que isto bata certo. Ora, lá vem ela, desasada, meio ensandecida e consegue, com pontaria, agarrar o pano e o bebé. Lá se esforçou um bocadinho mais. Aquilo não estava previsto, sempre pensou que fosse mais leve, mas não era. Raptora de crianças. O oposto do lirismo da cegonha, esta ave não estava boa da cabeça. Sabemos isso. O marido, cegonho, descobriu quando se aproximava, ele em voo descontraído no caminho do ninho. Vinha do lado de Castro e depara-se com aquela triste e arrojada cena. Na carroça, o casal, pais biológicos ficaram aterrados e começaram os dois aos gritos. O homem corria e a mulher chorava em pranto, tal era o cenário. Corria o pobre pai e batia as asas a louca da cegonha, antítese do que devia ser. Pela estrada foram, era aquela a situação. O homem, a suar as estopinhas e aos saltinhos para ver se agarrava a pata da cegonha, a mulher a acelerar a carroça puxando pelo macho que a levava, o cegonho a perseguir a louca da mulher. E a cegonha a acelerar o bater de asas para ver se mantilha a altitude e se escapava de todos. O bebé adormecera com o balanço, entretanto, e era o único que se mantinha calmo e sem transpirar.

No fim, no fim, lá teve de parar a ave enlouquecida e o homem conseguiu agarrar o bebé que foi libertado e nunca mais deixaram a criança desprotegida na estrada entre Castro e Aljustrel. Foi uma trabalheira que ninguém mais esqueceu. Resumindo, todos suaram as estopinhas, daí a expressão atualmente. Todos, menos o bebé que dormia. A cegonha foi internada e o cegonho nunca mais foi visto naquelas bandas.

 

Imagem de Cajoco em cajoco1935.blogspot.pt