22 Outubro 2017      12:45

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BRYTER LAYTER

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

Já não reconheço um álbum pela capa. Não é grave, serão desde logo tentados a pensar. Mas é, e muito. Noutros tempos, entre o momento em que olhava pela primeira vez a capa de um disco e em que finalmente o ouvia podiam distar horas, dias, semanas. Esse espaço de tempo tinha, então, inevitavelmente, de ser preenchido com doses não controladas de expectativa e devaneio. Nada de inesperado, conquanto não raras vezes elevado à décima potência. E quando tudo – percurso e pós-percurso – se revelava em perfeito equilíbrio, a vida nos seus elementos estritos (sinónimo em simultâneo de dois aparentes contrários: real e absurdo) lograva desde logo ficar para trás. Onde convinha. A cidade já não era assim tão pequena, as raparigas deixavam de importar (sinónimo de existir), surgia no horizonte como sorriso aquela força esquiva, e habitualmente inútil, chamada futuro possível.

Vejamos o caso de Bryter Layter, de Nick Drake:

Os três níveis da moldura, em suposta profundidade; o homem ensimesmado enquadrado de tal forma com a guitarra que, sem ela, é como se não houvesse a possibilidade do homem; e na sequência, súbita legitimidade, súbito absoluto, os sapatos, como uma oferta que não temos a possibilidade de recusar, como uma dádiva cuja ausência tornaria tudo o resto inaceitável. Sapatos disponíveis, enormes, em breve nos nossos pés (por notável ironia) demasiado pequenos.

Depois, por vezes muito depois, o “grand finale” – que não o é, pois funciona como um lugar mental onde desde logo sabemos ter de regressar inúmeras vezes –, como quando ouvimos Hazey Jane II, na parte em que diz:

“And what will happen in the evening in the forest with the weasel with the teeth that bite so sharp when you're not looking in the evening. And all the friends that you once knew are left behind they kept you safe and so secure amongst the books and all the records of your lifetime.”

Gostava de acreditar que ainda se faz música assim, mas na verdade já não a oiço. Tal como deixei de olhar para as capas dos discos.

 

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