22 Dezembro 2018      12:35

Está aqui

Pele

Transparecia, à flor de si mesma. A sensação que passava por cima era como se fosse uma centopeia que passava e que a arrepiava. Perdia-se, diariamente, num universo tão povoado, repleto de tantas cores, castanhas, castanhas mais escuras, castanhas mais claras, quase brancas, amarelas, vermelhas, e nenhuma era diferente, a não ser na tonalidade e em algumas nuances que as tornariam únicas.

Transparecia, com desejos de sentir a água a escorrer ou algum arrepio que a fizesse sentir como se fosse um animal de penas. Uma qualquer gota de água devolveria a hidratação que tanto faltava. Em regueiros que se abriam, uns tanto agrestes, outros mais suaves, sentia-se a passagem do tempo em si, decorrente dos gestos comuns do dia-a-dia.

Custava-lhe deixar atrás as perdas, a sua epiderme saía e o rasto, como se fosse parte de si e não os despojos de um qualquer dia, sacudiam-se na natureza, perdendo-se no tempo. A pele, inerte e esquematizada, perfeitamente delineada, era sublime. Encostava-se a outras procurando nelas o calor e o alívio de se sentir isolada. Arrepiava-se em constâncias inconstantes e acabava-se. Era pele e nada mais.

Corria e percorria os vales e os montes, os arbustos, o betão, sem que soubesse o lugar mais confortável para se aclimatizar. Tantas outras vezes, desde tempos que não se contavam, abrigava-se e escondia-se debaixo de peles e lãs, em algodão e burel, até hoje, em poliéster e em outros materiais sintéticos que o homem inventou para a esconder de si mesma. A pele não se vê na totalidade. A pele não se sente. Transparece-se só, à flor de si própria. Os homens desconhecem como a tratar. Inventam loções e untos que a possam preservar. Inventam pinturas que a alteram.

À flor de si mesma, a pela envelhece rejuvenescendo-se. De forma natural, cobrem-se-lhe os poros que respira. Enchem-se, abaixo, e em lugares escolhidos, a flor de si e estica-se aquela que se encolhe e se adapta aos anos que passam. Mudam, tal como os sentidos do vento que já não lhe cria os detalhes que outrora a embelezavam.

No toque, as marcas que outras peles e outros objetos lhe deixam. Entre a suavidade do gesto amoroso que a renasce, a brutalidade do toque agressivo e da irrelevância que a transforma e dói, assim vive a inconstância daquela que, à flor de si mesma se constrói e que moldam os homens e as mulheres. À flor de si, o toque salgado da água do mar que a seca, o gesto doce da água perfumada de rosas que o banho lhe dá. Ou mesmo, em tempos idos, o leite de burra que dizem tomavam os que podiam para a amaciar e tornar mais clara.

A pele tem a cor que tem e vive dessa diferença. Em cada diferença, a sublime perfeição que a torna parte da mesma humanidade. Estranha tantas vezes ao olhar, coberta pelas contingências do tempo e do clima, a pela transparece em si mesma e cobre cada pedacinho das mulheres e dos homens que sem ela não vivem.

Dizem que se renova a cada dia. Não recordamos a que perdemos, a que sacudimos com os cremes e as escovas que inventámos para a melhorar. Sem necessidade disso, num qualquer dia em que não nos lembramos que existe, ela transparece, sempre, à flor de si mesma e arrepia-se, com estas ou tantas outras palavas que poderiam, ou não, ser ditas.     

 

 

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