8 Julho 2018      11:54

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Cornfield – Brando

THE NIGHT OF THE FOLLOWING DAY (1968) de Hubert Cornfield

O nome é absolutamente excepcional: Hubert Cornfield. Arriscamos dizer único. A fazer lembrar uma personagem de Nabokov. O que por si só não diz muito, mas ajuda a elevar o olhar sobre a estranheza: nem pelo nome? Sim, é possível construir uma cinefilia de décadas sem nunca o ter ouvido. Nem pelo nome, portanto. E apesar de tudo dirigiu nomes como Sidney Poitier, Bobby Darin, Edmond O’Brien, Richard Boone e, abram alas, Marlon Brando, então a viver os dois melhores anos (em rigor os únicos aproveitáveis) da sua década maldita, os swinging sixties.

Filmes foram poucos e o que dele se dizia e diz não é menos misterioso – Por exemplo, no guia do ano 2001 da Time Out, na recensão crítica a The Night of the Following Day, pode ler-se o seguinte: “Cornfield é um dos mais enigmáticos cineastas americanos do pós-guerra, na indústria deste tenra-idade, e cujos raros filmes, peculiares e inovadores...” No resto, as referências escasseiam, estranho quase silêncio até ao desvanecimento. Fala-se um pouco mais de Marlon Brando e da sua participação no filme, o que também era de esperar.

Circunstância a fazer lembrar um outro nome, Michael Wadleigh, que realizou o filme oficial de Woodstock, nada fez durante onze anos, e então dirigiu um dos mais desnaturais e belos filmes dos anos 80, Wolfen (1981) (também inovador e peculiar e com um actor famoso como protagonista, Albert Finney), e depois desapareceu para todo o sempre – Parece que se tornou motorista de autocarros numa inóspita cidade do Ohio. Cornfield, se não teve tal destino, houve para com ele o estranho dever do esquecimento. Enfim, nomes que vão aparecendo, à espera de ser descobertos (verificação necessária com olho sequioso).

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The Night of the Follwing Day é, em abstracto, o mais próximo que Cornfield esteve (ou poderia ter estado) de um sucesso. Brando, ainda que em horas baixas, voltara à ribalta no ano anterior – prodigioso no alegórico Reflections in a Golden Eye e protagonista daquele que haveria de ser o último Chaplin, já sem Chaplin, A Countess from Hong-Kong. Não lhe bastou, Brando ainda era Brando, mas o público (acto de irreparável descortesia) já se tinha esquecido. Vito Corleone não estava assim tão longe, é certo, mas para Cornfield seria de pouco consolo. Bad Timing.

História de um crime falhado – Brando e o seu gang apresentam-se como criminosos profissionais e nós acreditamos, mas não por muito tempo. Levam a jovem filha de um milionário para uma casa de praia longe de tudo e esperam ganhar uma fortuna com o resgate. Parece funcionar na perfeição, mas é apenas aparência (e que nível de aparência!). Um(a) junkie, um psicopata, um desesperado e Brando – no último filme em que apareceu belo, como o deus que sempre foi, num louro extremo que nunca antes tinha sido, e perdido como ele gosta e nós ainda mais. Nada funciona, afinal; tudo corre mal mesmo antes de ter de correr mal. No final percebemos porquê: não passam de uma eventual construção (maquinal?) de uma mente faminta e também ela em dissonância.

Espectros – Contornos por preencher (como aliás nos aparecem na brilhante sequência nocturna na praia em que Brando se digladia com o verdadeiro vilão da história / sonho).

O chauffeur (personagem sem nome) de Brando talvez seja, no seu mui contido desânimo interior, o único a vislumbrar a sua não pertença integral àquele universo, e por isso o seu ambíguo sorriso estático no fotograma final é tão estimulante quanto tem a funcionalidade de um soco no estômago. A fazer lembrar um outro sorriso, distante deste dezasseis anos, o de Robert de Niro no final de Once Upon a Time in América, de Sergio Leone. Curiosamente ambos têm a sua dose de incompreensão e vilipêndios.

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Referência final a Willy Kurant, acima de tudo: cinematographer; um também quase-silêncio, que tendo em conta alguns dos cineastas acima mencionados só pode ser de singular homenagem. A já aludida sequência nocturna na praia é obviamente dele. Nem todos têm as homenagens que merecem, dirão, mas os silêncios têm vantagens: no mais das vezes constrangem, noutras dão espaço para os sorrisos, nas restantes permitem a notável reflexão. O que de melhor se pode oferecer a quem trabalhou com praticamente todos os mestres. Tudo o resto poderia soar a desfaçatez.

 

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