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José Carlos Adão

Dores de cabeça e caspa

Cheguei a casa hoje. Amanhã, quando estiverem a ler isto, será hoje, mas será o dia seguinte, logo aquilo que sabem amanhã, escrevi sem saber o que acontecerá até lá. Quando comecei este texto, tinha chegado a casa há três horas. O meu pai assou sardinhas, a minha mãe preparou uma salada. E eu senti-me feliz por estar em casa. Não tinha dores de cabeça, muito menos caspa. Daí o título do texto desta semana. Não tem relação especial ou privilegiada com nada. É simplesmente uma frase sem verbo. Há só o sujeito.

Paço a Passo

Andava tudo num virote. A mulher, o marido, os filhos, os primos, os empregados e as empregadas, o cão, o gato, as galinhas e o pato. Porquê ninguém sabia bem. Eu sei, mas não conto. Enquadremos o texto que aqui se sugere a leitura. A família morava num paço, que é uma casa grande, enorme neste caso. O Paço da família Passos era uma distinta moradia. Andava tudo numa azáfama. Era dia de festa. O seguinte. Aquele era da preparação. A mulher, o marido, os filhos, os primos, os empregados e as empregadas, o cão, o gato, as galinhas e o pato.

Início e fim

Mantenho-me sereno. Sempre sereno. Exceto quando perco a serenidade e me confundo comigo próprio e me iro comigo e sinto que os outros estão, eles, irados comigo. Estou calmo. E no meio desta calma que, mais do que aparente, é concreta. Escrevo estas linhas como quem fala em rima. Não me demoro no meio e faço com que cada verso rime com o próximo. Tudo isto para falar do início e do fim. Das coisas que começam e das que acabam sem dar sinal.

Aguarela em tons de azul

O céu, quando entrámos no meio da água estava azul, tão azul que se confundia entre o que há em cima e o que há em baixo. Entre nós um suporte de madeira, oval, que nos permitia balançar nele sem molhar os pés. Era uma aguarela em tons de azul, um alívio nos tons cinzentos e carregados dos dias em que o sol não pintava.

Vírgulas

Ando aborrecido. Deve ser deste tempo que não muda. Ora está um calor húmido ora está de chuva como hoje. Não se sabe o que vestir. É uma maçada. Ando aborrecido. Mas não sou o único. Este tempo afeta muitas pessoas. Há umas mais alegres do que outras e outras que sofrem mais com as mudanças do tempo. Dói-me o joelho quando chove e as articulações todas quando está calor. Quando neva não me dói nada.

Bloco de notas

Era louco. Ainda será, porventura. Assim o tratavam. Assim se referiam a ele. Completamente doido, alucinado. Andava de capa à Zorro e tinha uma t-shirt do super-homem. Na cabeça usava um chapéu de plumas, à século XIX. Era doido varrido e conhecido da vila toda. Caminhava, nestes trajes e nos seus sapatos de plataforma, avenida acima e avenida abaixo. Não falava com ninguém e usava já uma bengala pois os sapatos de plataforma e a malinha com que sempre andava, eram parte de si, mas pesavam. Nos braços, tatuagens a cobrir aquilo que a capa e a t-shirt do super-homem deixavam de fora.

António. Toni. Tó para os amigos mais íntimos. Era o seu nome, aquilo que o definia. No momento em que se levantava, olhava o sol que entrava pela janela e sentia que a pele escurecia. Nesse instante, sentia-se António. Os filhos chamavam-lhe pai. A mulher Tó. Os vizinhos senhor António e alguns amigos, os compadres, as pessoas da vila tratavam-no por Toni. Seria ele uma pessoa diferente aos olhos de cada um dos outros e debaixo de cada um dos diferentes nomes? O seu nome completo era um, longo, cheio de passado e marcas do lado materno e do lado paterno, mas ninguém lhe chamava esse nome.

O rancho

O pequenito chamava-se Nico. Abreviatura de Nicolau. Tinha nascido cinco anos antes da altura em que se começa este relato. Passa-se na distante província de Portugal de seu nome Algarve. Estamos, imagine o senhor leitor, aí nos anos trinta do século passado, ou em qualquer outra altura, Nico, de graça completa Nicolau, um rapaz igual a todos os outros da sua idade naquela vila à beira-mar. As coisas que fazia eram as coisas que todos os outros rapazes da sua idade faziam. Costumava ir ter com o pai que era pescador e observava o mar e observava a pesca que chegava.

Imaginação

Sinto-me como uma criança que não tem brinquedos finos para brincar. Sinto-me como um rapazito, na sua tenra idade dos cinco anos que não tem nada além daquilo que lhe está disponível para brincar mas falta-lhe o produto acabado e que constrói ela própria. E a criança inventa e cria mundos que não existem na sua cabeça.

Movimento

Impressiono-me. A cada momento que avanço, no circuito dos caminhos por fazer, transformo-me em impressões, vivo cada salto como se a montanha russa em que nos apoiamos fosse um terreno seguro de betão ou alcatrão que não se move. Nessa estrada, nesse terreno contínuo, sem curvas. Imagine-se uma estrada que atravessa o deserto desta América.

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