2 Junho 2018      09:57

Está aqui

Vírgulas

Ando aborrecido. Deve ser deste tempo que não muda. Ora está um calor húmido ora está de chuva como hoje. Não se sabe o que vestir. É uma maçada. Ando aborrecido. Mas não sou o único. Este tempo afeta muitas pessoas. Há umas mais alegres do que outras e outras que sofrem mais com as mudanças do tempo. Dói-me o joelho quando chove e as articulações todas quando está calor. Quando neva não me dói nada.

Não é disso que quero falar. Não vos interessaria minimamente as minhas dores e os meus lamentos. As lamúrias não pagam dívidas e deve sempre ter-se um pensamento positivo e encarar o futuro com um olhar proactivo. Tentarei ser assim na história que hoje me veio à ideia. Na altura vivia uma mulher com tantos anos que já toda a gente tinha parado de contar a sua idade. A altura é o lugar mais acima daquele que fica mais abaixo. Assim se referiam a ele as pessoas que eram as vizinhas da mulher mais velha.

Tinha cabelos brancos tão longos. Havia anos e anos que não os cortava. Eram tão brancos que se houvesse neve e nela se deitasse parecia que era careca. Era assim a Engrácia. Tinha a sua graça. Todos nós temos a nossa graça. Engrácia vivia uma vida calma e relaxada. Tinha tido tempo para se chatear durante a vida inteira. Hoje em dia só se sentava numa cadeira de baloiço durante o tempo de menos calor.

Os netos e os bisnetos sentavam-se à volta dela. Sentavam-se no chão. Ela sentava-se na cadeira de baloiço que ainda era mais velha do que ela. Tinha esse direito. Dizia aos netos e bisnetos. Tinha dito aos bisnetos. A idade é um posto. Ela tinha categoria de emérita. Engrácia não engraçava com muita gente da aldeia. Melhor dizendo não tinha engraçado durante a vida. Hoje em dia já não lhe fazia diferença. O importante era a cadeira. O importante eram as refeições. O copo de vinho tinto. As sobremesas. Os beijos e os abraços. Na idade da Engrácia o resto não importava muito.

Engrácia tinha uma particularidade. Tornava-a única. Não conheci em tempo algum ninguém assim. Engrácia falava sem vírgulas. Engrácia falava sem pausas. Vivia a vida a correr. Devagar. Sentada na cadeira. Isto porque falava sem vírgulas e quando se fala sem vírgulas e se fala em frases muito grandes acabamos por passar a mensagem de que falamos a correr e as pessoas que nos tentam acompanhar o raciocínio ficam sem perceber nada e nunca vão conseguir perceber como é que o nosso pensamento anda tão depressa e as pessoas andam também tão depressa e não param para respirar mesmo sabendo que os nossos pulmões precisam de oxigénio que depois levam para as veias e o sangue que leva esse oxigénio para o cérebro e não se fica a saber nada. Que chatice. É uma maçada.

 Engrácia falava assim. Quando contava as suas histórias aos netos parecia que tinha falado a correr. Os netos tentavam seguir e os olhinhos pareciam balas que andavam de um lado para o outro. Da informação dada apanhariam metade se tanto. Mas Engrácia era assim. Não tinha ideia do que o seu pensamento afetava a vida das pessoas. Talvez por isso muitas das pessoas da aldeia não lhe achassem piada. Não a percebiam. Tomavam a sua falta de vírgulas por achar-se superior e correr na língua como corria no pensamento. Engrácia só fazia pontos finais e de exclamação e de interrogação quando queria saber alguma coisa. Aos netos só dava pontos finais e bombons. Às vizinhas pontos de exclamação. Nunca vírgulas. Não conhecia o conceito. Isso não existia. E houvesse alguém que tentasse por vírgulas. Ninguém se atrevia. Os seus cabelos brancos eram um posto. Ali não nevava. Se nevasse seria como um careca. Os netos sorriam quando ela dizia isso a correr. Brincando brincando já tinha passado uns séculos sem vírgulas. Podemos dizer que não houve pausas breves na sua vida. Como podemos também dizer que não as houve nesse texto. Se não reparou bem veja agora. Não há vírgulas.