12 Maio 2018      09:46

Está aqui

António. Toni. Tó para os amigos mais íntimos. Era o seu nome, aquilo que o definia. No momento em que se levantava, olhava o sol que entrava pela janela e sentia que a pele escurecia. Nesse instante, sentia-se António. Os filhos chamavam-lhe pai. A mulher Tó. Os vizinhos senhor António e alguns amigos, os compadres, as pessoas da vila tratavam-no por Toni. Seria ele uma pessoa diferente aos olhos de cada um dos outros e debaixo de cada um dos diferentes nomes? O seu nome completo era um, longo, cheio de passado e marcas do lado materno e do lado paterno, mas ninguém lhe chamava esse nome. Toda a gente o tratava de forma diferente. Era assim com o Tó, como é com qualquer um de nós.

Conhecemo-nos nos nossos tempos de tropa. Ambos estivemos na recruta e nenhum de nós foi destacado para fora de Portugal. Ficamos ali mesmo pela zona de Santa Margarida de Tancos e assim passamos o tempo de recruta. Aquilo que me permite escrever hoje, este breve artigo é o que percebi das palavras que trocámos, das ideias que transmitiu e dos gestos que teve com as outras pessoas. Tó era uma pessoa boa. De bom fundo, de boas raízes. Não o tratava por Tó. Para mim era o Fialho. Para todos os outros camaradas era o Fialho.

Depois da tropa, nunca mais vi o Fialho. Sei que andou uns anos no estrangeiro a trabalhar e que lá conheceu a mulher que havia de ser a sua mulher, a mãe dos seus filhos, a nora da sua mãe e do seu pai e a cunhada do seu irmão. Também ela adquiriria tanta faceta. Somos uma enormidade de coisas. Eu, às vezes, tento transformar estas coisas e estas ideias todas em palavras, mas nem sempre consigo. Falho como todos falhamos. Quem não falhava no tiro ao alvo era o Fialho. Hei de ter sempre no pensamento os tiros certeiros que fazia ao alvo, sem nunca falhar e que deixavam metade dos camaradas com inveja. Às vezes, apesar de toda a admiração por ele, também tinha. No fundo, é um traço que nos faz humanos. Não sei se os camarões ou as pulgas também têm ciúmes ou inveja. Pode ser que sim, mas nunca terei, eu, possibilidade de averiguar tal facto, pelo que não seguirei esta linha de pensamento.

Tó, ou Fialho, voltaria a encontrar-me, anos depois, já eu tinha construído centenas de casas, incluindo a minha próprio. Enveredei por esse caminho. Podia ter sido técnico especializado de laboratório mas não fui. Dediquei-me à construção. Voltamos a encontrar-nos e voltei a lembrar-me da irmã de Fialho e da grande paixão que tive por ela, quando a vi no juramento de bandeira. Não foi muito do agrado dele, mas ainda assim tentei fazer a corte à bela donzela. Ele chateava-me a cabeça com a ideia de que o negócio estava mal. Eu não tinha irmãs.

Não casei com a irmã dele. Ela apaixonou-se por um moço lá da aldeia dela e nunca olhou para mim por maior figura de idiota que fizesse. E fiz tantas. Coisas de apaixonado. Tó, ou Fialho ria-se. Eu chorava.

O meu filho mais velho é da idade da filha mais nova do Tó. Agora já o consigo tratar assim. Já almoçávamos todos os anos em família alargada. Já nos riamos dos tempos da recruta, daquele sargento que era um imbecil. Do alferes que até era um tipo porreiro e liga-nos essa camaradagem. Tó, um nome que não esqueci e por isso o escrevi hoje, de novo, cinco anos passados do seu desaparecimento. Este é um texto de reflexão sobre a amizade. É um pedaço de ideia sobre a perda que se perdem na memória. É algo que se consubstancia de retalhos e num bolo compacto.

A falta que vários nomes fazem a várias pessoas, de várias formas, são como buracos negros do Universo. A memória que se tem dessas pessoas que vão desaparecendo tona-se cada vez mais distante. Aquelas figuras claras e distintas vão desvanecendo, vão perdendo a forma e acabam por ser tão vagas como as partículas da neblina. Por isso é tão importante ver e rever as palavras que dos outros e de nós escrevemos, na desesperada tentativa de manter robusta a foto de rosto do António que era Toni, que era Tó e que um dia foi o Fialho que conheci.