5 Setembro 2015      00:46

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O TELEFONEMA

O telefone tocou durante largos minutos. Era um daqueles telefones pretos, pesados que rodava com a força de um dedo indicador. O som ecoava por toda a casa e o estrondo ficava ainda durante largos minutos. O silêncio que se seguia deixava antever o isolamento daquela casa. As portas eram de madeira maciça e o percurso da antiga casa senhorial longo até que se pudesse chegar ao telefone.   

O telefone continuava a tocar sem que ninguém o atendesse. Não era telefone que pudesse enviar mensagens instantâneas nem telefone que fosse táctil. Era um telefone preto, antiquado e que fazia chamadas apenas. O formato parecia-se com um telefone igual a tantos outros. A história que se conta aconteceu há muitos anos, nos tempos em que o telefonema que se esperava não estava à mão, nem chegava por Skype ou Viber ou qualquer outro aplicativo. A chamada telefónica era aguardada como quem espera por boas notícias. Nem sempre eram boas notícias. As boas notícias chegam quando as esperamos de coração aberto. Hoje, aquela mulher, naquela casa perdida no meio do nada, atrás dos montes cobertos de pinheiros sabia que o telefone não trazia boas notícias. Alguém que devia chegar, não vinha à hora marcada. Não estaria parada na estação do autocarro. Era um homem, fardado, condecorado como são aqueles bravos que lutaram por ideias. Talvez fossem os seus, ou talvez não fossem. A mulher esperava o telefonema como quem espera por alguém que chegará sempre a horas, quaisquer que as horas sejam.

O telefone tocou outra vez. A mulher correu para o telefone, ouviu uma voz rouca e pesada do outro lado. Pousou o telefone e não voltou a falar. A dor era demasiado forte. O telefonema era o que não queria receber. Não era a voz do filho a dizer que estou atrasado na estação se Santa Apolónia. Era a voz de alguém que nunca tinha ouvido, a dizer que o seu menino não voltaria a casa. O telefone tocou uma vez. Nunca mais tocou naquela casa.

Rita chegou a casa do tio, passados trinta anos. A casa tinha estado fechada até esse dia. No meio da montanha, onde o cheiro é o dos pinhos e as árvores são verdes e cobrem tudo, uma velha casa senhorial estava coberta de plantas e não se via nada além de ruínas e de um musgo e de trepadeiras que escondiam segredos de anos e mágoas de séculos. Rita chegava à casa envelhecida, triste da partida do tio. A tia partira muitos anos antes. Atendera um telefonema e nunca mais falou. A dor consumiu-a, começando pela fala e pelos olhos. Tudo o que dissera antes, as alegrias, os sorrisos perderam-se no toque de um telefonema. Não dormiu um segundo mais. Na sua cabeça, ecoava só o som de um telefone preto e enlutado. O seu menino não voltava. Nunca mais voltou com as suas palavras, com os seus sorrisos de menino de dezoito anos que partiu para uma terra que não era a sua.

Rita abriu a porta pesada, fechada por anos. Lá dentro, numa mesa, um telefone preto antigo que já não tocava nem trazia notícias. Rita olhou-o fixamente durante largos segundos e, num gesto calmo, disse ao marido, este vamos levar. Foi o último momento em que a minha tia falou.

Dormiram num hotel perto do monte, depois de decidirem que destino teria a velha casa senhorial. Rita nessa noite não dormiu. Ligou a televisão e nas notícias a tragédia de um telefonema que um pai também recebeu. Numa costa, num mar imenso, nas fronteiras, nas portas abertas que se fecham da Turquia, um menino de sua mãe jazia morto e arrefecia, como dizia Pessoa no poema O menino de sua mãe. As lágrimas escorreram no rosto de Rita, silenciosa como a sua tia, depois do último telefonema onde as palavras não se ouvem nem há diálogo. Só um suspiro que se esgota e não respira. No outro lado do telefone, a voz que não se quer ouvir, neste lado do telefone, a dor que impede a respiração.

Rita acordou cedo, quase sem dormir e disse ao marido que não há memórias que se possam manter naquela casa, naquele monte. Leva o telefone consigo, onde se guarda toda a vida de sua tia, do menino de sua mãe que arrefece no plaino abandonado, nas costas da nossa vida que nunca chegaremos a viver se não a entendermos verdadeiramente.