Há muitos, muitos anos atrás, quando ainda era criança, um dos meus desportos favoritos consistia em procurar descobrir a forma de abrir o diário secreto onde a minha irmã depositava os seus mais preciosos e inexpugnáveis pensamentos. Aquilo parecia o Fort Knox.
Felizmente fracassei sempre.
Nessa altura, era muito comum registar-se algo de interdito aos outros e que nunca deveria ser partilhado com mais ninguém. E, no mínimo, estava sempre assegurada a certeza inequívoca da irrupção de um conflito nuclear, caso alguém prevaricasse essa zona de proteção e segurança que o espaço privado protegia (ufa, ainda bem que fracassei sempre).
Hoje as coisas alteraram-se de forma diametralmente oposta. Apesar de obviamente ainda existirem diários, atualmente escreve-se muito mais para os outros, do que para nós próprios.
E neste enquadramento, o drama surge quando ninguém se digna ler aquilo que se pretende mostrar para o exterior.
E aquilo que se pretende mostrar para o exterior, muitas vezes não é o que se passa no interior.
Passa-se então o tempo a querer mostrar o que não é, mas deveria ser.
Passa-se o tempo a querer parecer o que os outros gostariam que nós fossemos.
Passa-se o tempo a tentar mostrar o que os outros gostariam de ver.
Passa-se o tempo!
E no decurso dessa passagem de tempo, as pessoas, por vezes, quase se esquecem de quem são, para passarem a viver no vazio daquilo que querem mostrar.
Proliferam nas redes sociais as fotos dos invólucros das pessoas, nos sítios que decoram com a sua presença, através dos milhares de selfie(sh) com que se (não) se retratam. O corpo que se substituiu à alma.
E é este o legado que estamos a deixar aos nossos filhos. Que mais importante do que o ser, será sempre o parecer…
…O que quase os despoja de alma e de responsabilidade, perante si próprios e os outros.
Mas como poderemos nós ensinar as nossas crianças a não oferecerem voluntariamente as suas vidas para serem vigiadas pelos Big Brothers dos nossos dias?
Como lhes podemos ensinar onde começa e onde termina a fronteira entre aquilo que é privado e o que é público, quando a própria Sociedade e os mass media os bombardeiam continuamente, com a devassa da intimidade e com a (des)promoção gratuita da banalização dos sentimentos e dos afetos?
Como podem as nossas crianças aprender a respeitar os outros, se nem têm oportunidade para se pensarem e conhecerem a si próprias? Completamente absortas do mundo e inebriadas pelo hipnotismo eletrónico dos Tik Tok´s que, em poucos segundos, lhes asseguram a satisfação imediata do prazer…
Como podem elas afirmar a sua individualidade e expressar a riqueza do seu universo interno, na procura de um caminho pessoal edificante, quando lhes são recorrentemente servidos em bandeja, para consumo diário, hordas de modelos sem virtude, pessoas fúteis elevadas a um poder social perverso, onde tudo vale para lhes assegurar o retorno desejado?
Mas que Sociedade é esta que glorifica o culto do inculto?
Vivemos na Sociedade da superficialidade, no culto do que é banal.
Vivemos num novo paradigma onde até as fake news são legitimáveis e toleradas, no enquadramento da defesa dos interesses instalados.
Mas não… Aqui não pretendo fracassar… Não com a minha filha!
Talvez seja um pouco démodé continuar a insistir na importância de percebermos quem somos interiormente, de quais são os valores nobres que nos devem nortear, ou na definição dos limites para a nossa omnipotência e egoísmo…
…Ou que importa mais o peso de um cérebro bem nutrido, do que o de uns potentes implantes de silicone fotografados numa paisagem idílica…
Mas não irei ceder.
Prefiro escolher acordar, sair deste Big Brother e seguir o (muitas vezes doloroso) caminho que me faz feliz!