29 Agosto 2015      16:12

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CONTO III

Durante o mês de Agosto presenteamos os leitores com um conto de ficção, sobre uma investigação contada pelo testemunho de um dos seus protagonistas, que se passa num verão quente do Alentejo. Uma história contada em quatro partes ao longo deste mês, pelas palavras de um inspetor frio, reformado, que relembra quando foi chamado para resolver o desaparecimento de uma criança em 2004, da autoria de João M. Pereirinha.
 

TERCEIRA PARTE

- Quando toda a gente chegou, foi uma confusão tremenda. Acho que havia uns três jornalistas para cada GNR a tentar invadir o perímetro de segurança; acabaram-se-me os cigarros até ter sido levado numa carrinha celular para um posto em Évora, e daí para Lisboa; o que mais me lembro é do ritmo com que tudo aconteceu, é como se estivesse a ver tudo em câmara lenta, quando tudo aconteceu à velocidade de uma bala perdida que me atingiu sem eu saber. Primeiro fui afastado do caso; depois abriram-me um processo disciplinar por negligência no apoio ao Major e no disparo fatal no velho; entretanto deram-me 15 dias de férias; e quando voltei estava tudo resolvido… lembra-se de como foi? – recostou o cotovelo direito sobre a mesa, com um cigarro na mão a fumegar, e encostou a cabeça ao polegar e olhou diretamente para o jornalista.

- Sim, do que sei e do que me lembro, o polícia que o substituiu no caso conseguiu uma confissão da mãe passados uns dias, sobre a morte acidental da criança por uma briga em casa, encoberta com a ajuda dos avós, que deram o corpo da criança a comer aos porcos. Ao que consta, terão depois simulado toda a cena para que parecesse um rapto ou algum tipo de ritual, e daí o sangue encontrado na cena do crime ser de porco e inclusive até deixaram um crucifixo em cima da cama, que seria um que faltava na casa dos avós…

- E não acha nada disso estranho? Quer dizer, eu não o culpo, naquela altura também só queria esquecer o caso… e acabei por esquecer, por uns tempos… mas não acha que falta qualquer coisa?

- Bem, à primeira vista é óbvio que falta o corpo da criança, mas face à confissão da mãe…

- Pois, sabe, confissões há muitas… enfim, não acha estranho, por exemplo, que o pai não tenha sequer aberto a boca uma única vez em tribunal, nem para confessar nem para se defender e, passado um mês, vão dar com ele enforcado na cela?

- Sim, mas não terá sido o sentido de culpa?

- E também foi o sentido de culpa que matou a velha ao cair da maca no hospital? E esta pessoa, reconhece-a? – tirou uma fotografia de dentre de uma pasta de arquivo e passou-lha para o outro lado da mesa com suavidade, levou o cigarro à boca e deu uma grande passa soltando o fumo para o lado e olhando pela janela sobre a cidade, com os olhos entreabertos sem olhar para a mesa.

- Espere… esta, esta é a mãe?

- Irreconhecível não está? – continuando a olhar pela janela.

- Mas a onde foi a isto?

- Quando o chamei aqui, disse-lhe que tinha uma história, achou que se resumia tudo às minhas memórias? Mas não se trata apenas das minhas memórias ou o que eu vi naquele dia. O que interessa mesmo foi o que eu não vi nesses dias. A história, se ela existir, cabe-lhe a si decidir, começa agora. Sabe, cada vez mais me convenço de que eu não devia ter ido trabalhar naquele dia, eu não era para estar ali, mas por algum motivo estranho atendi o telefone e fui, matei uma pessoa e foi o caso em que tive menos horas e o que vi resolver-se mais depressa. – virou-se novamente para a mesa, abriu outra cerveja, encheu o copo e deu um gole e depois outra passa no cigarro – Ás vezes temos tudo à nossa frente e escolhemos olhar para as coisas erradas, ou não olhamos sequer… esse costuma ser o maior pesadelo de um inspetor, e o maior erro também…

- É esse o seu maior pesadelo, é por isso que voltou a investigar esta história?

- Não! Não costumo ter problemas em olhar para o que devo, nunca tive… O meu maior defeito sempre foi aquilo que eu não consigo aceitar, mesmo tendo consciência daquilo que estou a ver. Quer mesmo saber quais são os meus pesadelos, pois eu digo-lhe: todos os dias sonho que entro numa casa, umas vezes vamos fazer uma apreensão, outras vezes capturar alguém, resgatar alguém, seja o que for, os motivos mudam conforme o dia, assim como a casa (acho que a minha mente prevê que eu não vou acreditar no sonho se a história for sempre a mesma), mas por mais que mudem os pormenores é sempre a mesma história, e depois de entrar vou entrando num labirinto de portas e corredores escuros, sem janelas, e vou perdendo contacto com toda a gente, até ficar sozinho, aí ouço alguém gritar numa sala, preparo-me para arrombar a porta, entro, aponto a arma e lá está, sempre uma sinistra criança, uma menina com os seus 14 ou 15 anos, não mais, a esfaquear alguém, e quando eu entro aponta-me uma arma carregada e destravada com a outra mão… acordo sempre com o disparo… mas sou sempre eu que disparo primeiro. – deu um gole na cerveja que quase despejou o copo.

Enfim, seja como for, naquela altura não liguei muito ao que aconteceu, mas é como naqueles policiais de suspense, sabe, onde nos vão dando pequenas pistas até que, quando chegamos ao fim tudo nos parece fazer muito sentido graças a uma grande pista que liga todas as outras… Ainda não cheguei a essa pista. Mas desde então que comecei a sentir uma pequena comichão com algumas coisas. Olhemos para trás, por exemplo, para tudo o que aconteceu novamente. A mãe confessa ter morto a filha acidentalmente, com a ajuda dos avós que deram a criança para comer aos porcos que, em menos de um dia, comeram tudo sem deixar rasto, os avós guardam as roupas da criança em casa, o avô morre num tiroteio à porta de casa, matando um Major com tiro de caçadeira que levava a mulher algemada e que acaba por morrer no hospital, e o pai não diz nada e enforca-se passado um tempo. E a mãe, a única sobrevivente, a que fechou o caso, está hoje numa ala psiquiátrica a bater com a cabeça nas paredes e com uma camisa-de-forças depois de já se ter tentado matar umas 18 vezes… sabe o que falta aqui, além do corpo? Um motivo…?! Foi isso que ninguém apresentou nunca, nem nas audiências em tribunal, nem na confissão, nem em parte alguma!

Mas nem foi por isso que comecei a investigar tudo de novo. Naquela altura também achei razoável, durante um tempo, que estando muita gente de férias ou deslocada, se tivesse chamado um rapaz novo para me substituir, mesmo quem foi, um miúdo que estava ali há menos de um ano, seja como for, ele era apenas um representante da PJ e o caso estava a ser coordenado pela GNR. Foi ele que conseguiu a confissão sabia…? Assim como foi ele que fez a maior apreensão de coca do ano, ao largo da costa vicentina, dois meses depois; e foi ele que coordenou um tiroteio de sniper em Bragança que liquidou cinco traficantes que iam numa carrinha para Espanha; E foi ele que, um ano e meio depois disto, se candidatou isoladamente a substituir o chefe de departamento e, mesmo com a pouca experiência que tinha, ficou no cargo. Uma carreira exemplar para Ministro do Interior, não acha? Uma estrela em ascensão… E tudo começou com aquele caso… com aquele mediatismo todo, aquela eficiência, aquele fechar de pontas quando o país estava sob o olhar estrangeiro, após ter organizado um europeu de futebol um mês antes… Mas sabe o que é que ele nunca mais investigou…? Desaparecimentos, homicídios, detenções, interrogatórios… o rapaz foi escalando de cargo em cargo mais depressa do que um carro de fórmula um! E hoje é ministro…

- Mas acha que ele foi negligente?

- Mais do que negligente, foi demasiado objetivo, acertivo. Quando se está perante um caso destes só há duas hipóteses à nossa escolha: ou se investiga todas as pontas soltas; ou se arranja um bode expiatório que feche todas as pontas!

- E você o que escolhe?

- Eu não tive hipótese de escolha na altura… quando fui julgado acabei absolvido, e com um louvor, mas aconselhado a dedicar-me mais ao trabalho de secretaria, por causa da idade, do trauma, etc., etc., etc.. Balelas! Até que numa dessas noites, depois de acordar com o disparo no sonho, vou à cozinha fumar um cigarro, ligo a televisão e lá estava o mesmo caso: uma criança desaparecida, que tinha sido acidentalmente morta pelos pais, que ocultaram o cadáver. Sem corpo, sem motivos, e com uma confissão. Era exatamente o mesmo caso, passados cinco anos. Coincidência? Impossível…

- Foi a partir daí que resolveu voltar a investigar o caso?

- Mais do que investigar o caso, voltar a ouvir e a rever tudo… você gosta de ler, ou de ir ao cinema? Não sei onde posso, ou podemos chegar com isto… a alguma verdade, a alguma denúncia, a uma espécie de suicídio involuntário? É um pouco como aquele famoso filme, “Vertigo”, quando despertamos para novas pistas sobre velhos casos, começamos a desconfiar de tudo e de todos, inclusive das nossas motivações, que muitas vezes não são meramente instrumentalizadas para chegar a um determinado resultado. É aí que os nossos medos se dissipam, como no livro “O Velho e o Mar”…

- O que quer dizer com isso?

- Quero dizer que o mais importante não é conseguir trazer a baleia para terra, o mais importante é conseguir vencê-la e derrota-la, independentemente do tempo que isso demorar, mesmo que depois esta seja comida pelos tubarões no regresso a casa… O que importa é fechar o caso, encontrar a ponta de verdade do novelo e desenleá-la até que a névoa da ilusão se dissipe. Eu comecei a fazer isso nesse dia, a meses de me reformar.

- E por onde começou?

- Sabe quantas crianças têm desaparecido em Portugal? Nas últimas três décadas há mais de 100 crianças desaparecidas por década… A larga maioria volta a aparecer, não passam de adolescentes com uma crise de identidade, ou envolvidos em disputas conjugais. Há uma pequena parte que nunca mais ouvimos falar, 48 na última década. E depois há uma coisa curiosa: encontrei, ao longo de trinta anos, 20 casos idênticos a este: uma criança desaparecida, com ocultação de cadáver por parte da família e a confissão de um dos envolvidos. Mas o mais surpreendente não fica por aqui…

- Então, há mais?

- De todos os condenados nesses casos, há apenas uma pessoa viva: a mãe da miúda... – acendeu um outro cigarro e deu-lhe várias passas, quase ofegante – foi aí que tentei falar com ela, mas está irreconhecível, não diz uma única palavra e ficou uma hora numa sala comigo, com um olhar vazio, sem responder a nada… Essa fotografia conseguia-a através do advogado dela… Inicialmente disse-me que não queria falar, etc., tive de seguir o gajo até a uma casa de putas e apanhá-lo com as calças na mão, tirei-lhe uma fotografia com flash e a partir daí a nossa conversa ficou iluminada. Nessa noite levou-me ao escritório, o homem transpirava como um ciclista na volta a frança, com medo do escândalo… deu-me uma cópia dos arquivos do processo, disse-me que nunca percebeu o que aconteceu, que a mulher nunca quis alterar o testemunho ou negar a confissão mesmo quando ele foi dar com ela espancada na cela, tirou-lhe fotografias (essas que aqui tenho) e tinha tudo para conseguir uma absolvição ou pelo menos lançar a dúvida sobre os factos, mas ela mostrou-se impassível… depois de me dar a cópia do processo dei-lhe a máquina fotográfica, “mas e o rolo”, disse-me ele, a máquina nunca chegou a ter rolo nenhum…

Depois de ler tudo, voltei a confirmar outra coisa. Naquele dia o Major tinha recebido um telefonema. Voltou a entrar dentro de casa. Saiu com a mulher algemada. Houve o tiroteio. E depois disse-me que o sangue na casa era de porco. Mas em todo o processo nunca foram apresentadas análises nenhumas que comprovassem isso. Aliás, não há nem uma única prova forense nesse sentido….

- Quer dizer que afinal a única prova que sustentou o caso foi a confissão?

- Sim, e não. Veja esta fotografia – tirou outra fotografia da pasta e passou-lha, e deu outra passa no cigarro – está a ver quem são?

- É a família toda junta, os avós e a criança…

- Sim, e pelo tamanho da miúda, era recente. Depois de ler tudo o que o advogado me deu e disse, voltei ao Alentejo. Está tudo exatamente igual. Quase tudo… A casa onde viviam, o pequeno anexo nas traseiras do casarão, foi transformado numa garagem. Bati à porta, ninguém me abriu. Fiquei à espera que alguém entrasse e nada. Percebi que não estava ninguém por lá, e entrei por uma janela nas traseiras, a que antes era do quarto da criança. Tudo vazio, literalmente, as divisões tinham sido deitadas abaixo e havia apenas algumas ferramentas penduradas de uma parede. Sai, fui até ao monte. Completamente abandonado. A pintura era penas um toque leve, os animais tinham desaparecido, e o poço não tinha balde. Mas o calor continuava abrasador. Dei uma volta ao monte, era como se tivesse chegado ao fim do mundo, a lugar de ninguém, a um deserto verde, um paraíso abandonado… Arrombei a porta e ouvi um barulho, e como se fugisse da morte passou-me um coelho por baixo das pernas, voltei a meter a pistola no coldre. Não havia ninguém na casa, estava tudo cheio de pó, e tal qual como tinha sido deixado naquele dia. Numa gaveta do quarto, encontrei um álbum de fotografias, onde estava essa. Voltei para a porta, onde havia luz par ver todas as fotografias com atenção e foi aí que reparei neste pormenor, consegue ver qual é?

- Não, ao que é que se refere?

- Repare com atenção, na ombreira, antes do corredor, lá encima, um crucifixo, pode descrevê-lo?

- Sim, madeira escura, uns quinze centímetros, com uma imagem de cristo em cobre por cima, agastada…

- Exatamente! O mesmo crucifixo cuja mancha na parede denunciava a ausência, em 2004, e que na confissão foi dito que tinha sido intencionalmente, e especificamente esse crucifixo, deixado sobre a cama da miúda…

- Mas…

- Mas acontece que eu estive na cena do crime e o crucifixo que estava lá, quando cheguei, não era esse! Lembra-se, era um crucifixo sem imagem. Mas olhe para esta fotografia, tirada à cena na mesma tarde do tiroteio e apresentada em tribunal – passou-lhe outra fotografia.

- É o mesmo…

- O que significa que…

- Que alguém adulterou a cena do crime!

(CONTINUA)