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literatura

Inveja

Invejo o pastor que faz do monte a sua casa.

Afortunada vida que parece ter,

— a dele ou a minha?

Quem vê de longe deseja ser

O que de perto se ignora

Passa o tempo

Nasce o arrependimento

De não ir enquanto é hora.

O pastor cuida do gado

Como eu cuido dos números

Pelo sol ele é castigado

E eu, nem por qualquer astro sou amedrontado!

Caminhamos unidos pela inveja de um sonho

convictos de que sonhar nos faz ser

quem somos.

 

Imagem de arquivomunicipal. cm-lisboa .pt

 

Decifrar como eles vivem o tempo

Ontem à noite, quando passei pela porta entreaberta da casa de banho, palavras sussurradas por uma voz que conheço impediram-me. Não tenho certeza se consigo transcrever tudo exatamente, mas tentarei. Não dormi a noite toda.

Alfaiate

Anselmo era alfaiate. Tinha essa profissão há muitos anos. Quase tantos quantos tinha. Habituado a ser profissional, fazia do tecido existente um modelo novo. Eram peças de roupa novas e modernas que saiam do seu ateliê.

Neste mundo de Anselmo, o tecido era sempre de boa qualidade. Não tinha uma oficina fixa. Andava quase como que um alfaiate ambulante, ao domicílio. Era lá, nas casas, que fazia os modelos fantásticos.

A gota mais pequena desta ribeira

Sempre que aqui estou, sinto ser
a gota mais pequena desta ribeira,
que corre em busca
do encontro inesperado
com um rio que me queira.

Não ambiciono fazer parte
de um rio muito grande,
e afluir em águas famosas
é o que menos quero.

Sempre que aqui estou,
sinto que sou o que
a gota mais pequena desta ribeira
nasceu para ser:
— um pouco do som,
da luz, da paz e do luar
que te faz fechar os olhos
e me desejar.

 

Imagem de wikimedia.org

Um palco sem asas

Pouco mais do que uma criança, comecei a apaixonar-me pelo tabuleiro de xadrez. Os jogos noturnos entre o meu pai e o meu irmão mais velho, ambos amadores apaixonados, eram um ritual doméstico de suspensão silenciosa da passagem do tempo e dos acontecimentos. Logo aprendi as regras, que não são complexas, e em pouco tempo comecei a sentir, antes mesmo de entender, que este jogo com mais de mil e quatrocentos  anos, na realidade não é simplesmente um jogo.

Oh, sol

O sol está amarelo. O sol está a queimar-me. O sol está a puxar-me para a felicidade. O sol pretende desenhar um sorriso na minha face que suplica tranquilidade.

Sinto que o sol é meu. Sinto que o sol vive para mim.

O sol de fevereiro abraça-me no abraço mais acolhedor que conhecera desde o fevereiro passado. O sol de fevereiro canta para mim.

Mas, chega de anáforas. A luz que o sol pinta não passa de uma ilusão.

Meu futuro amante, perdoa-me. Não confies no meu coração.

O céu está nu e desenho as minhas desculpas nele.

Uma família de papagaios

Era uma larga família de papagaios, uma família tão comum como qualquer outra família, só que esta era de papagaios. Eram o papagaio, a papagaia e os papagaios pequeninos que somavam na totalidade, dez. Era uma família numerosa de 10 pessoas.

Através de fantasias duradouras

O habitante no espelho permanece teimosamente mudo.

Vejo algo no seu rosto, apenas uma ruga de sobrancelha ou do lábio inferior, que tem um sabor irónico, quase divertido. Quanto à natureza do meu hóspede, como já escrevi várias vezes, estou cada vez mais inseguro, mas não tenho dúvidas quanto à sua presença real e à sua atenção constante para mim.

As formas de sonho do Maleão

Maleão era um nobre distinto que viveu há mais de duzentos anos. Numa terra quente e húmida, que mais tarde, muito perto dos nossos anos, se viria a reconhecer como tropical, nasceu num berço aristocrático e recusaria, na idade adulta, a ser tratado por menos nível do que a sua raiz nobre merecia.

Ó mãos que beijam a terra

Ó mãos que beijam a terra

na fértil esperança da semente efémera!

Fostes feitas para trazer do futuro

as rugas que o tempo espera.

As rugas que o tempo espera

são lágrimas que o suor ampara.

Ó mãos que beijam a terra,

deixai para trás a miséria,

brindai pela paz,

(a fartura é inimiga da guerra).

Ninguém vos pode vencer!

As mãos que beijam assim

são livres de escolher.

— Dá-me a tua mão;

se quiseres,

juntos seremos a terra

que mais ninguém quis ser.

 

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