4 Outubro 2023      15:39

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O novo Karl Marx, provavelmente, já nasceu

Tanto já terá nascido como, andará por aí a aguardar o seu momento, terá entre 12 e 22 anos de idade, será um jovem estudante na escola ou na universidade, fará parte de grupos de contestação climática, posteriormente, do movimento associativo e, invariavelmente, fará parte de um partido, ou dois, caso o primeiro seja um erro de casting, entrará no mercado de trabalho, e ao cabo de dois ou três anos de precariedade concluirá que está a vender o seu suor, o seu desgaste e a sua saúde em benefício de uma monstruosa máquina aparatosa que não o beneficia a si, mas sim a 1% de uma população ultra-abastada.

Marx, o verdadeiro, filósofo com o qual discordo em absoluto no que toca à sua teorização do modo de vida ideal, o comunismo, modelo de sociedade este, cuja degenerescência em totalitarismo e barbárie é cientificamente incontestável, errou na solução. No entanto, não errou na identificação do problema, porque existia um problema.

Nos meantes do sec. XIX a revolução industrial prosseguia a todo o gás há já algumas décadas, o que trouxe consigo mudanças significativas na economia e na sociedade. Numa população grandemente rural, camponeses foram seduzidos a trocar o campo pela cidade, com promessas de uma vida melhor, mais trabalho e mais dinheiro, a fábrica era o futuro. A realidade, todavia, foi outra. A vida destas pessoas piorou, trabalhavam mais horas, tinham menos poder de compra, menos tempo livre e o trabalho conseguia ser tão duro como no campo, não esquecendo a perda de qualidade de vida que se impunha na mudança da saudável vida ao ar livre para as pesadas e sujas cidades industriais.

A revolução industrial e as suas características excessivamente produtivistas geraram inevitavelmente um fosso ciclópico entre uma classe de trabalhadores incrivelmente explorada e precária, e uma classe de industriais ultra-ricos. Estas desigualdades trouxeram, evidentemente, níveis massivos de insatisfação e revolta que, em 1848 resultaram num grande processo de lutas urbanas conhecido como a “Primavera dos Povos”, caos no qual, foi também publicado o famigerado “Manifesto Comunista” de Marx e Engels, e, a partir daí, como sabemos, o resto é história.

Neste primeiro quarto do sec. XXI é a revolução digital que prossegue a todo o gás há já algumas décadas, e que também está a trazer consigo mudanças significativas na economia e na sociedade. Numa população grandemente urbana, os trabalhadores de 2023, foram seduzidos por promessas de uma vida confortável a troco de dispendiosos estudos e empenho no trabalho, com promessas de uma sociedade meritocrática e economicamente justa, onde haveria lugar para o tempo livre e desafogo para os sonhos e projectos de vida, o escritório era o futuro. A realidade, porém, não corresponde à promessa. A vida destes trabalhadores (despromovidos a “colaboradores”) consiste numa constante precariedade contratual, onde ser despedido e posteriormente contratado para se evitarem efetivações é uma constante, o contrato de trabalho temporário é o novo feudalismo e as empresas de recrutamento temporário são os novos capatazes. Adicionando isto a regimes salariais de subsistência, para que o trabalhador não morra de fome até ao mês seguinte, a viver num velho T3+1 com 5 pessoas e direito a uma prateleira no frigorífico por preços de hotel de charme. O tempo livre é passado num trânsito infernal, transportes insuficientes, lotados e em greve eterna, a fazer a marmita, comer, lavar loiça, banho, e na cama, a descansar.

A revolução digital, tal como a industrial, viriam com promessas de retirar tarefas ao nosso dia a dia, de modo a que se pudesse desfrutar mais desta vida. Porém, ambas, não só impuseram mais trabalho, como impuseram as suas matrizes ultra-produtivistas desreguladas que cavaram fossos colossais entre classes, trazendo desigualdade e precariedade, glorificando os Zuckerbergs e Musks desta vida, assim como os JP Morgans e Rockefellers de outra vida, rebaixando os Smiths, Rodriguez, Müllers e Silvas de sempre, que desembarcarão inevitavelmente em ressentimento e revoluções políticas.

Não sabemos se o “próximo Marx” estuda Direito ou Economia, se trabalhará numa big 4 ou num call-center, se vive em casa dos pais ou num apartamento de um subúrbio com mais três estranhos, se leva marmita ou salta a refeição. Sabemos sim, que se acotovelará pelas multidões do precariado, e fará chegar o seu momento. E a partir daí, o resto, será novamente história.