6 Fevereiro 2016      09:57

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DOIS PEIXES NO AQUÁRIO

"PARALELO 39N"

No apartamento, decorado em estilo minimalista, de bom gosto visto no IKEA, Madalena tinha tudo arrumado, exceto o quarto dos miúdos, porque esse não o conseguia manter em ordem. Na sala, apenas um sofá grande, uma chaise longue, um tapete com riscos abstratos, um móvel comprido de televisão, a respetiva televisão em cima, uma janela com cortinados, também eles de desenhos abstratos a lembrar que aquela casa era decorada com bom gosto. As paredes não eram despidas e numa delas levantava-se uma decoração que a dona da casa encomendara especialmente a uma decoradora dessas de renome que aparecem semanalmente na televisão.

Na outra parede, um quadro que era, no fundo, uma imitação de um dos quadros de Vieira da Silva. Com alguns retoques e algumas diferenças mínimas, o pintor deste quadro conseguiu fazer com que o quadro por si pintado não fosse acusado de plágio. O resto da casa era deveras desinteressante mas seguia, toda ela, o mesmo tom de bom gosto e minimalista que não valerá aqui a pena descrever exaustivamente.

No quarto dos miúdos, dois irmãos, um com quatro, o outro com dois anos, a desarrumação reinava. O tom minimalista transformava-se em confusão completa. Brinquedos em cima de brinquedos, puzzles no chão, desarrumados após uma tarde de diversão e, quando não dormiam os dois irmãos, um barulho de gritinhos que eram, no fundo, a vida da casa. Mas, em cima da cómoda, inatingível ainda aos irmãos, estava só um aquário redondo cujo interior se preenchia com água, pedras, duas algas plásticas e dois peixinhos amarelos cuja vida era olhar atentamente para a desarrumação que reinava naquele quarto durante o dia e observar atentamente a rapidez com que aqueles pais colocavam tudo de volta no lugar, adormeciam as crianças e voltavam ao quarto quando um deles começava a chorar ou tinha feito xixi nas fraldas.

Assim era a vida dos peixes dourados no aquário no quarto do apartamento, num prédio igual a tantos outros. Tudo na vida dos peixes era minimalista. Não havia neles noite nem dia, abriam e fechavam a boca dentro de água, observavam aquilo que não entendiam, à sua volta e, na infinita capacidade dos peixes em respirar dentro de água, viviam o curto tempo de passagem na terra, ou seja, submersos. Havia, porém, duas alturas de adrenalina na sua vida curta de peixe, nas horas que marcam os nossos dias. Aquela em que lhe era servida a comida, vinda dos céus, pensavam. E a outra, menos recorrente, acontecia mais ou menos uma vez por semana. A água que os acolhia e lhes permitia viver, tanto quanto a própria comida, era mudada pelas pessoas grandes que entravam no quarto, às vezes.

Estavam já preparados para isso, mas era sempre um terror ter de ser apanhado, lutar pela vida, ficar dentro de um frasco e, depois de tudo terminado, voltar a ver o outro peixe e cair num aquário que parecia que não era o seu.

Nos dias normais, em que não ocorriam estas mudanças bruscas, os dois peixes, iguais, olhavam-se como se entre si estivesse um espelho e, do outro lado, estivessem as mesmas escamas, os mesmos olhos, o mesmo abrir e fechar de boca cronometrado. Lá fora, de vez em quando, aproximavam-se os olhos azuis gigantes e medonhos acompanhados de uma voz que parecia ecoar dentro dos ouvidos. No aquário, pareciam bombas que rebentavam e os pobres dos dois peixes, como que comunicando entre si no abrir e fechar de boca, não tinham para onde fugir ou onde esconder-se.

Era a sua vida assim, curta, já o sabiam. Aproveitavam os dias rodeando o aquário que, por ser redondo, não tinha fim. Tinham todo o tempo para acabar o percurso sem se preocupar com o mundo que, fora do seu cosmos, seguia o seu curso e mudava todos os dias, ainda que ficasse sempre na mesma quando se apagavam as luzes. A vida era simples. Eram apenas dois peixes num aquário, num quarto desarrumado, de um apartamento pequeno numa cidade grande. Não conheciam outra. 

 

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