1 Maio 2021      10:58

Está aqui

O raspelho

Ninguém o conhecia. Ninguém sabia quem era. De facto, é complicado começar uma fábula com o pronome indefinido ninguém. Este, por muita pena minha e tristeza, alguma, começava assim. O raspelho nunca tinha sido ninguém importante, nunca tinha feito um feito que aparecesse na televisão… o raspelho era uma pessoa discreta, que não gostava de ser capa de revista, alguém que não pensava nunca ser parte de algo maior. Era o raspelho que passava os dias no meio da terra e da palha e isso bastava-lhe.

Não havia nada de importante que Raspelho sentisse no corpo e que o fizesse pensar. O que é um raspelho? Quem é o Raspelho? Bem, em outros tempos foi dos mais famosos no Egito. Estava no braço direito da Cleopatra e nas costas do Marco António. Quer dizer, esteve… depois eles morreram e teve de mudar-se para outro lugar.

Não vos disse mas raspelho era imortal. Coitado… viveria para sempre e nunca seria lembrado. Ao contrário dos que seriam lembrados, ele não morria. Era um raspelho imortal. Wow! Dito assim fica mais poético… e o que quero neste breve texto, repleto de vida, é falar de morte e falar de imortalidade.

Voltemos ao que interessa. Ninguém quer ler as divagações de um escritor de crónicas anónimo. Aquilo que é o fico e o título da crónica é o raspelho. E o raspelho é imortal.

Conheci-o no Egito, nos braços de Cleópatra, nas costas de Marco António. Morreram e fugiu. Podia ter passado pelos pés de Platão mas decidiu ir direto às mãos de Júlio César. Quase morria na navalha de um Bruto mas safou-se por um fio, o fio da navalha. Pareceu-me bem agora!

E o raspelho? Para onde foi? Durante muito tempo não soube nada dele… reapareceu na corte de Henrique VIII, contou-me uma senhora chamada Ana de Boleyne, pouco antes de perder a cabeça.

Porém, quem não perdeu o tino foi o raspelho que continuou a perseguir a sua felicidade e a procurar o seu caminho! Perninhas para que te quero… pensava ele. Aguentou-se à paisana uns tempos e não muito depois, chegaria a um lugar chamado Portsmouth, rodeado de gente com chapéus estranhos e costumes ainda mais diferentes. Foi a primeira vez que viu perús e digamos que não desgostou do sabor. Convenceu toda a gente, por meio de telepatia a começar uma tradição de consumir as pobres criaturas em novembro. Fez isto e desapareceu. Nesses anos andou por tanto ligar e viu tantas paisagens que, muitos anos depois decidiu ter uma intervenção maior. No casaco azul de um Senhor chamado George, meteu-se no buraco do primeiro botão e, dali, ouvia tudo.

Terá tido alguma intervenção? Creio que não, creio só que raspelho, depois disso terá regressado à Europa e, em Portugal, no Alentejo, ficado em sossego nas planícies e montes, nas paredes de pedra caiadas, onde encontraria outros iguais e seria feliz. Não contou a sua narrativa a ninguém, ninguém iria acreditar num raspelho imortal. Se fosse uma barata, talvez… assim, não!

Raspelho, porém, era ninguém… ninguém o conhecia, mas sabia tudo, conhecia tudo, vivera tudo e ainda assim era o raspelho anónimo.

No Alentejo, às vezes, ninguém é alguém e alguém não é ninguém. E um raspelho vai além do dito popular.