22 Março 2024      10:18

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Inteligência Artificial: O que (não) é

Nos dias de hoje, é difícil não sermos confrontados com referências cada vez mais abundantes a determinadas inovações tecnológicas na área da Inteligência Artificial. Inovações essas, que muitas vezes são apresentadas com a promessa de revolucionar inúmeras áreas em que a Inteligência Artificial atua. Este conceito está cada vez mais disseminado nos media e atualmente é bastante frequente depararmo-nos com o mesmo, tanto em meios de comunicação social de cariz técnico e especializado como em fontes mais generalistas.

Da mesma forma, também é igualmente frequente que para o público em geral que não lide com este tema do ponto de vista técnico, exista uma associação da expressão “Inteligência Artificial” à imagem de um ser robotizado dotado de capacidades cognitivas “quasi-humanas”, que aportam motivações potencialmente ameaçadoras e apocalípticas para a nossa sociedade e espécie em geral.

O objetivo deste texto, passa essencialmente por desconstruir essa associação automática de referência que possa existir no leitor, ao ouvir falar de Inteligência Artificial. Associação essa que foi criada, enriquecida e continuamente alimentada tanto pela 7ª arte, como pela indústria especializada que ao protagonizar os desenvolvimentos e avanços mais recentes da área, fá-lo, recorrendo ao jargão genérico e simplista de “Inteligência Artificial”, não clarificando do que realmente se trata. Assim, para concretizar este objetivo de desmistificação de conceitos, é importante começar por definir Inteligência Artificial e perceber que formas de Inteligência Artificial são possíveis, pois a clarificação desta noção parte precisamente pela definição e descrição da sua natureza.

Como em muitas áreas académicas, os autores que contribuem para as mesmas nem sempre estão de acordo quanto à sua definição e por isso, como é comum em ciência e epistemologia, várias propostas de definições são possíveis e apresentadas, muitas vezes sem reunir consensos. Esse facto apresenta-se de forma gritante em áreas multidisciplinares, como é o caso da Inteligência Artificial e das Ciências Cognitivas em geral. Ao longo dos anos, os investigadores e especialistas nesta área produziram e entregaram várias designações que com uma dose saudável de pragmatismo reducionista, podemos agrupar em dois grandes grupos.

Por um lado temos a Inteligência Artificial geral, designada também por inteligência artificial forte. Por outro, a Inteligência Artificial fraca/específica.

A Inteligência Artificial geral, será talvez a mais familiar ou a mais histórica se quisermos. Aquela em que o leitor leigo eventualmente pensa quando recorre à referida associação descrita anteriormente, em que o objetivo, passa precisamente por criar uma tecnologia robotizada, automatizada, que apresente uma cognição em tudo semelhante à mente humana, dotada de uma inteligência e consciência senciente plena, embora artificial e por isso, zero por cento biológica e cem por cento mecânica.

Como alternativa bastante drástica do pressuposto pela Inteligência Artificial geral temos então, uma segunda forma possível de Inteligência Artificial: a designada Inteligência Artificial fraca, que representa uma transição clara de paradigma.

A postura adotada com a Inteligência Artificial fraca, por parte dos engenheiros e peritos que contribuem para o seu desenvolvimento, é pautada pelo pragmatismo de não copiar o ser humano ou formas de inteligência natural, pois não interessa olhar para o cérebro e tentar replicar o que lá está, mas importa sim, dotar as máquinas de capacidades que podem superar os seres humanos em domínios muito específicos, super automatizados e super especializados.

A grande distinção entre as duas formas de Inteligência Artificial, parte desta diferença basilar. Na atualidade, quando somos presenteados com notícias de evoluções enormíssimas na área da Inteligência Artificial, estamos a falar efetivamente de Inteligência Artificial Fraca (super dependente do seu domínio de atuação e nada genérica).

Assim, faz sentido aprofundar um pouco mais esta noção de Inteligência Artificial Fraca, que por decisões de Marketing ou pura e simplesmente por simplificação, mais frequentemente é apresentada apenas como Inteligência Artificial. Não é uma mentira, mas sim uma omissão enorme e uma falta de clarificação deste domínio dado que, como já foi sugerido, a Inteligência Artificial pode representar diversas naturezas qualitativas distintas e ter expressão em diversas vertentes (onde a robótica é apenas uma delas), mas neste momento, dadas as circunstâncias atuais, o ramo que ganhou amplo desenvolvimento e continua a ganhar, é a área de Inteligência Artificial que se designa por Machine Learning, conceito que em português é conhecido por Aprendizagem Automática e que é uma forma de Inteligência Artificial fraca.

Embora seja mais fácil compreender o que é a Aprendizagem Automática/Machine Learning, através do exemplo prático descrito mais à frente, por agora bastará indicar que se trata apenas de uma vertente de Inteligência Artificial (entre muitas outras), que consiste em dotar sistemas da capacidade de classificar dados - não sendo explicitamente programados para isso - através de um universo de dados base, que foi utilizado como referência no processamento dos algoritmos, que foram trabalhados para obterem relações matemáticas (algébricas e estatísticas) desses mesmos dados.

E na prática, estamos a falar essencialmente desta abordagem na maioria dos casos em que ouvimos ou lemos notícias sobre desenvolvimentos em Inteligência Artificial nas mais diversas áreas. Desta forma, passámos da noção bastante mediatizada de Inteligência Artificial para chavões nada comerciais como algoritmos matemáticos, estatísticos e algébricos. Chavões esses, que ajudam a compreender outra designação que facilmente se confunde com Inteligência Artificial e Aprendizagem Automática, que é a Ciência de Dados. A análise de dados hoje em dia é amplamente computacional, faz uso alargado de algoritmos estatísticos e algébricos de natureza, na sua atividade, sendo a Aprendizagem Automática e a Ciência de Dados áreas, que se sobrepõem com frequência.

Para um melhor entendimento e resumindo, Aprendizagem Automática/Machine Learning trata-se de uma forma de Inteligência Artificial (fraca), traduzindo-se num conjunto de técnicas que compõem parte do corpo teórico-técnico daquilo que é a Ciência de Dados atualmente.

Importa então reforçar novamente, que atualmente a maioria dos desenvolvimentos noticiados na área da Inteligência Artificial, não se referem a um robô que vai ocupar o lugar do homem no sentido apocalíptico mas sim, a algoritmos de Aprendizagem Automática e de Ciência de Dados em ação.

A Aprendizagem Automática divide-se em duas grandes abordagens: a Aprendizagem Automática supervisionada e a não supervisionada.

A Aprendizagem Automática Supervisionada recorre a dados previamente classificados e identificados, e a Aprendizagem Automática Não Supervisionada tem como objetivo, agrupar um conjunto de dados não previamente classificados, em diversas classes/categorias, em função de semelhanças que possam existir em determinados subconjuntos de dados.

Para uma melhor compreensão destas duas formas de Aprendizagem Automática, peço ao leitor que recorra à visualização do seguinte exemplo, aplicado à área da Biologia Zoológica. Um Biólogo Zoólogo, que queira desenvolver um algoritmo de Aprendizagem Automática para identificar e classificar animais de diferentes espécies, através de fotografias, recorrendo à Aprendizagem Automática Supervisionada, teria que dispor de um conjunto de fotografias das espécies que queira ver classificadas pelo algoritmo (neste contexto técnico o algoritmo designa-se por “modelo”), classificando as respetivas fotografias com a designação do animal em questão. O algoritmo (modelo) seria então “treinado” (outro jargão técnico aplicado ao procedimento de processamento computacional envolvido) com os dados em questão, até conseguir classificar satisfatoriamente de forma correta, um conjunto de novos dados que desconhece. No exemplo descrito, o modelo sendo bem treinado, conseguiria identificar os animais corretamente em novas fotografias. Aplicando o mesmo exemplo à Aprendizagem Automática Não Supervisionada, os dados fornecidos ao modelo não estariam previamente classificados, sendo que o modelo empregue, agruparia os dados fornecidos em subconjuntos, onde idealmente os subconjuntos obtidos de dados, seriam de facto, animais distintos e devidamente segregados por espécie.

Acredito que após a descrição procedimental deste processo, seja fácil compreender o quão distante estamos da noção de Inteligência Artificial referida no início do texto. Clarificando um pouco mais, um algoritmo treinado no domínio da Biologia/Zoologia que empregámos no exemplo anterior, não vai sair deste âmbito e classificar dados de outras áreas (Astronomia por exemplo) e muito menos, tomar conta dos nossos sistemas operativos. Este tipo de risco, é completamente impensável e nem faz sentido considerá-lo neste contexto.

Quando vemos notícias que indicam que a Inteligência Artificial revolucionou esta ou aquela área, estamos na maioria dos casos a ser informados sobre a aplicabilidade de Aprendizagem Automática e Ciência de Dados em diversos contextos, com universos de dados próprios.

A Aprendizagem Automática/Machine Learning, embora seja uma tecnologia muito sofisticada, de um ponto de vista paradigmático trata-se de computação matemática relativamente simples, que devido a um conjunto de circunstâncias e desenvolvimentos nos últimos anos, ficou bastante capacitada e super poderosa de um momento para o outro e apesar de ser, uma abordagem de certa forma antiga que acompanha a génese da própria Inteligência Artificial, atualmente com o crescente aumento de capacidade de processamento computacional, armazenamento de memória e disponibilidade massiva de dados, a Aprendizagem Automática foi alavancada drasticamente e tendencialmente continuará a sê-lo ainda mais no futuro.

Assim, já podemos compreender melhor como de facto a Aprendizagem Automática e a Ciência de Dados têm contribuído para o desenvolvimento de várias linhas de investigação de diferentes disciplinas académicas bem como, para o desenvolvimento de novas tecnologias. Sendo uma ferramenta bastante colaborativa e altamente dependente do saber Humano, a Aprendizagem Automática não se trata apenas de uma forte aliada quer da investigação científica, quer do desenvolvimento tecnológico, mas é também, uma ferramenta capaz de produzir novas manifestações e exemplos de estruturas e padrões que “apreende”, fruto do processo de treino de modelos como aquele descrito nos parágrafos anteriores.

Ou seja, trata-se de uma ferramenta capaz de reproduzir arte “quasi-original”. Achou-se durante muito tempo que a arte e criatividade humana, seriam faculdades que a Inteligência Artificial não conseguiria alcançar, mas no entanto, as diversas formas de arte são essencialmente estruturas organizadas, padrões, em suma, correspondem precisamente ao que a aprendizagem automática faz de melhor: identificar e replicar padrões.

É verdade que a inspiração emocional por detrás da criação de inúmeras formas de arte, não será replicada. Contudo, o ato humano racional e consciente de criar estímulos visuais organizados, sons com nexo, entre outros exemplos de estruturas, é algo que está plenamente ao alcance da aplicabilidade tecnológica da Aprendizagem Automática, tornando-se fácil, distinguir computacionalmente o ruído do som do vento a bater nas árvores das Quatro Estações de Vivaldi. Como também é fácil conceber que os painéis de São Vicente de Fora ou a Capela dos Ossos, são uma estrutura organizada e discernível que o nosso cérebro consegue percecionar.

Embora pareça intimidante e assustadora, esta ideia de uma tecnologia produzir arte, a desconstrução do princípio subjacente revela que o paradigma aplicado, de grosso modo, é sempre o mesmo. Não querendo desvalorizar os receios que devemos ter relativamente a qualquer desenvolvimento tecnológico desenfreado, acredito que os medos úteis, são os medos informados e não aqueles baseados em noções completamente erradas e desfasadas da realidade. Comecei por referir que o conceito de Inteligência Artificial, está amplamente disseminado, intencionalmente e negligentemente de forma errada e como consequência, diariamente são tomadas decisões sobre estas matérias, onde não abunda um conhecimento científico e tecnológico sobre o tema. Como sempre nos alertou Carl Sagan, não temos uma sociedade tecnocrata ainda que, tenhamos uma sociedade altamente dependente de tecnologia e ciência e por isso mesmo, na atual era da desinformação, é essencial, no meu parecer, um esforço comum em melhor compreender e transmitir temas com complexidade relativa, para que se possa almejar um futuro mais assertivo, despido de histerismos distratores da real natureza dos temas em análise.

Ainda que de forma modesta e tentando ir ao encontro do objetivo inicialmente traçado, espero ter contribuído com o presente texto, para tão necessário esforço.

 

Bibliografia consultada e recomendada:

Artificial Intelligence: A modern approach - Stuart Russell e Peter Norvig

The Master Algorithm - Pedro Domingos

Uma Paixão Humana: O Seu Cérebro e a Música - Daniel J. Levitin

Consciousness Explained - Daniel C. Dennet

Cosmos - Carl Sagan

 

Por:

Jorge Espiguinha Mimoso é Consultor Informático e Engenheiro de Software; Licenciado em Engenharia Informática pela Escola Superior de Tecnologia do Instituto Politécnico de Setúbal, Licenciado em Psicologia pela Universidade da Beira Interior Pós-Graduado em Psicologia Social e das Organizações pelo ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. Membro efetivo na Ordem dos Engenheiros Técnicos no Colégio de Engenharia Informática.