5 Maio 2018      10:09

Está aqui

O rancho

O pequenito chamava-se Nico. Abreviatura de Nicolau. Tinha nascido cinco anos antes da altura em que se começa este relato. Passa-se na distante província de Portugal de seu nome Algarve. Estamos, imagine o senhor leitor, aí nos anos trinta do século passado, ou em qualquer outra altura, Nico, de graça completa Nicolau, um rapaz igual a todos os outros da sua idade naquela vila à beira-mar. As coisas que fazia eram as coisas que todos os outros rapazes da sua idade faziam. Costumava ir ter com o pai que era pescador e observava o mar e observava a pesca que chegava.

Aproximavam-se as festas de verão da vila, que começavam a ser festejadas com mais encanto naquela altura. Toda a gente se vestia a rigor e toda a gente corria para aquelas festas. Era uma forma de encontrar velhos conhecidos, rever a família que morava a mais de 40 ou 50 quilómetros de distância. Era raríssimo ver carros por aqueles lados e as carroças, umas mais novas do que as outras, faziam longos desfiles e toda a gente ficava admirada a olhar. Nico lembrava-se de duas festas destas desde que se conhecia por gente. Tinha a estranha sensação, embora tivesse só cinco anos e não soubesse ainda muito bem o que era ter sensações de premonição mas a verdade é que um nó no estômago lhe dizia que havia alguma coisa especial que aconteceria naquela festa.

Aproximou-se tanto o dia até que chegou e toda a gente tirou a roupa dos armários. Cheirava tudo ainda um bocado a naftalina. Normal. Dentro dos armários, de onde nunca saiam a não ser em dias de casamentos, batizados e festas anuais de verão, os fatos e vestidos de festa, cheirariam naturalmente ao que os protegia das traças, a poderosa naftalina. Algumas das mulheres usavam ainda, desafiando as regras, os famosos biocos. Mas não nos dispersemos. Falávamos de Nico que estava na festa. Lá estava também toda a gente e estava, além de todos os da vila, ou quase todos… há sempre aqueles que não participam nas festas nem em nada dessas coisas. Ti Rosarinha era uma delas. Por essa mesma razão, ela não voltará a aparecer neste relato.

Esse ano era especial, de facto. Marcava a primeira vez que Nico teria a oportunidade de ver ao vivo uma dança que mudaria o rumo dos seus dias e o curso dos seus acontecimentos. Exatamente por esta ordem. Nico viu uma dança que nunca tinha visto. Era um rancho. Todos se vestiam de forma elegante. Não tão igual àquela que ele se vestia, mas de uma opulência e de uma simplicidade que impressionava. E, num pequeno palco, colocaram-se em roda. Eram muitos. Aí uns vinte. Nico ficou intrigado e pensou muito sobre o que dali sairia. De repente, toda a gente rodeou o palco e o som de uma concertina deu o mote para as pessoas começarem a dançar a uma velocidade estonteante.

Soube depois o nome da dança. Corridinho. Fora uma dança trazida por um espanhol, inspirada em danças de outras terras e era uma forma de galanteio entre homens e mulheres. Nico não sabia nada disso mas ainda assim, a velocidade a que se dançava e a roda que as saias faziam, os homens a agarrar as mulheres com um braço e segurar o chapéu, com o outro no ar eram verdadeiramente fenomenais. Deixou-o literalmente de boca aberta. Tanto assim foi que os amigos tiveram de a fechar. Com cinco anos Nico não era muito de se impressionar mas encontrou ali a sua paixão. Decidiu, naquele momento que, além de outras coisas, seria dançarino no rancho. Fosse naquele ou em outro qualquer. Mas dançaria. Tanto até que ficasse tonto, como aquelas pessoas que estavam no palco improvisado.

Naquele dia a festa acabou à hora que sempre acabava. Naquela noite, Nico teve dificuldade em adormecer. Dias depois, chegou uma notícia que apanhou o pobre rapaz de surpresa. O pai e a mãe iam deixar o Algarve. Chegara uma carta de uns primos que viviam numa cidade de que nunca tinha ouvido falar, no Norte, chamada Viana do Castelo. Ali o peixe não dava e lá em cima, o primo prometia trabalho e sustento. Iriam mudar-se. Estava decidido. No pensamento de Nico, a angústia de já não poder dançar como aquelas pessoas e, triste, sentou-se ao lado da mãe que acabava de tirar a casca a uns griséus.

A mãe perguntou-lhe o que se passava e Nico respondeu que estava triste. A tristeza não era tanto por deixar atrás o mar e os amigos mas porque queria dançar e aquela dança certamente não encontraria lá na terra longe para onde iam. A mãe fez um sorriso de mãe e descansou-o. Não te preocupes meu filho. Não haverá essa mas terás outras danças e haverá ranchos certamente.

Assim foi. Palavra de mãe. Partiram para Viana e lá, na primeira festa, o regresso do encanto de Nico. Ainda mais opulentos os vestidos, em tons de vermelho e negro. As mulheres com grandes fios de ouro. Um dourado tão brilhante que lhe encandeava os olhos. Os homens dançavam quase tão rápido como os outros que recordava do sul. Vestiam-se de negro e vermelho e branco e viravam, e rodavam, em pares. O vira, a chula, a cana verde e o malhão passaram a fazer parte dos seus dias e dos seus sonhos. Nesse mesmo dia, já com seis anos, falou com o senhor que tocava a concertina e disse-lhe que queria ser dançarino.

Assim foi. Desde que começou, atravessou dias, anos e décadas. Nico só parou de dançar quando morreu. Como as outras paixões da sua vida, o rancho fazia parte da sua pele e a música era como se os ouvidos fossem eles próprios um gramofone. A partir desse dia e até que morreu, Nico era a paixão que levantava os pés, em cada a atuação do rancho. Misturavam-se e não se podiam separar um do outro. Assim se vivem as grandes paixões.