1 Março 2024      10:32

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A minha imagem no escuro

Deixei a luz apagada ao entrar em casa. Não fiz o esforço de ligar o interruptor e fazer com que a corrente passasse para as lâmpadas do candeeiro que me alumiavam a sala. No escuro, não se via nada, além das luzes da tuas dos postes que iluminavam alguns espaços e dos carros que ocasionalmente passavam. Essa noite era pouco movimentada e não sei, até hoje, explicar porque não acendi a luz ao entrar em casa. Talvez fosse medo que alguém me detetasse num espaço que era o meu mas que receava. Talvez quisesse continuar a apreciar a pouca luminosidade que até esse momento me tinha acompanhado.

Havia no Hall de entrada vários móveis. Um deles tinha um espelho que eu usava quando saía e quando entrava de casa. Nesse espelho conseguia observar-me. Assimetricamente mas eu próprio, disfarçando aquele cabelo espetado que me iria acompanhar e incomodar no resto do dia. Assimetricamente naquele espelho conseguia ver o meu processo de envelhecimento, ele, com a sua idade, mostrava-me exatamente a minha, através das rugas, através dos cabelos grisalhos que me surgiam nas laterais junto às orelhas e nas barbas.

Assimetricamente observava outro eu naquele espelho. Um que não me sentia realmente. Os anos vão passando mas a imagem que tenho de mim, gravada no meu cérebro é aquela dos meus 20 anos. Só consigo sentir essa diferença através do aparecimento dos cabelos brancos, das diversas dores e outras questões de saúde associadas que, a partir dos 40, nos acompanham.

Se não me visse ao espelho nunca, o cabelo não me incomodava, nem as rugas, nem a pele que lentamente se torna mais flácida. Se não me visse ao espelho, não teria pensado em todos estes aspetos assimetricamente.

Bem, as dores nada se relacionam com o espelho, pelo que não são afetadas por esse ritual diários. O resto, porém, sim.

Por isso, nessa noite deixei a luz apagada para ver a minha imagem no escuro, sem as imperfeições do tempo, sem a assimetria. A partir desse dia percebi que a imagem que vejo de mim no escura nunca será nunca mais dos que aquela que criei na minha mente sobre mim próprio e que é a que me identifica quando falo com alguém sem ter por perto um espelho e luz.