4 Agosto 2020      10:48

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Contos breves no tempo curvo - "Esta roda está parada, por falta de mandador"

Hoje de manhã, ao sair de casa, perguntei-me se essa conversa realmente havia acontecido alguns minutos antes, ou se eu apenas a havia imaginado, ou se fazia parte de um sonho daqueles que acontecem no final da noite.

Senti-me desconfortável, mas não assustado. Sentei-me no carro, imóvel por alguns minutos, antes de conseguir encarreirar no trânsito. Tão distraído que quase causei um acidente. 

(Eu) Olá, ontem à noite pareceu-me ouvir música vindo desta sala.
(Espelho) Tens a certeza disso?
(Eu) Não sei. Acordei e lembro-me que a lua estava muito brilhante acima do jardim. A música não se ouvia com muita clareza, parecia muito distante.
(Espelho) Eu pedi aos músicos que reduzissem o volume para não te incomodar enquanto sonhavas ouvi-los. Mas ao menos reconheceste-os?
(Eu) Lembro-me de uma voz cantada e de algumas palavras que vieram até mim: "minha roda está parada" ou algo assim, e muitos acordeões que tocavam juntos. O efeito não era novo e havia emoção no canto. Era muito agradável. Foi um sonho, ou alguém realmente estava fazendo música nesta sala?
(Espelho) “A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por música não deve entender-se só aquela que se toca, se não também aquela que fica eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve supor que se fala só do que vem da lua e faz as árvores grandes perfis; há outro luar, que o mesmo sol não exclui, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o que são. “
(Eu)
“Sim, mas é triste o acordar”.
(Espelho) “O bom sonhador não acorda. Eu nunca acordei”.
(Eu) Mas os músicos realmente estavam aqui?
(Espelho) Claro! Mas onde é que para ti é aqui? De que lado do espelho? “É que o sonho... é uma ação que se tornou ideia; e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria, que é o estar no espaço.” No entanto, devo admitir que toda vez que tocamos essa peça, fico emocionado quando ouço a voz  da Carminho chamando-me.
(Eu) Não entendo nada: quem te chamava?
(Espelho) Não podes entender, ou talvez simplesmente não queiras. Mas não tenhas medo. “A verdade é que não existo- nem eu, nem outra coisa qualquer. Todo este universo, e todos os outros universos, com seus Criadores e seus diversos Satãs- mais ou menos adestrados- são vácuos dentro de vácuo, nadas que giram, satélites, na órbita inútil de coisa alguma”. 
(Eu) Pretendes confundir-me com palavras fascinantes. Quem finges ser hoje?
(Espelho) “De tudo quanto não vale a pena ser, faço eu meu domínio e o meu império, senhor absoluto do interstício e do intermédio, do que na vida não é vida. Como a noite é o meu reino, o sonho é o meu domínio. O que não tem peso nem medida, isso é meu. Corrompo, é certo, porque faço imaginar. Corrompo mas ilumino.”
(Eu) Deixei de compreender que é verdade e o que não é.
(Espelho) “Eu nunca pretendi dizer a verdade a ninguém em parte porque de nada serve, e em parte porque a não conheço.”
(Eu) É tarde e eu tenho que ir. Não imaginas quanto apreciei a tua conversa. Nunca ouvi ninguém falar assim.

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Nota do autor: Gostaria de agradecer a todos que povoaram essa conversa ou esse sonho: em primeiro lugar a Danças Ocultas (um grupo musical constituído por Artur Fernandes, Filipe Cal, Filipe Ricardo e Francisco Miguel), a Carminho e a Orquestra Filarmonia das Beiras para jogar O diabo tocador. Ainda mais agradeço ao grande Fernando Pessoa com sua história A hora do diabo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, que li novamente nestes dias curvos que vivemos. 
Também gostaria de dizer a Rita Medinas (colunista neste jornal) que ela não deveria ter medo do espelho, nem de olhar para dentro dele. Embora nem todos os espelhos sejam criados iguais, todos eles contêm coisas interessantes.
 

Nota do editor: Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular, onde, com a sua companheira, Manuela, foram salvos de um afogamento numa praia o ano passado. Aqui e ali a pandemia está a mudar a nossa maneira de viver e pensar. Esse médico com barba branca, apaixonado por lugares estrangeiros e um pouco idealista, interpreta esse tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.