Está aqui

José Carlos Adão

A ALMA

Duas crianças estão sentadas numa sala vazia, onde só está um televisor desligado e dois copos de água. As duas crianças olham ao seu redor. Uma, a primeira, se assim podemos contá-la, olha as paredes despidas. A outra, a segunda, olha pela janela, por onde entram alguns raios de sol, tímidos, mas determinados na sua essência, acinzentados por aquelas nuvens que escondem o Sol como o corpo esconde a alma. As paredes dessa sala vazia estão despidas. Não se vê nelas um rumor, nem a ponta de vida do quadrado que é esta sala.

A HORA DA CEIA

Nos meses frios, em fins de novembro, a família deve juntar-se à hora da ceia. Deve ser um ritual que se cumpra religiosamente à mesma hora, todos os dias. O pai, vindo do trabalho, a muitos quilómetros de distância, do outro lado da cidade grande, vindo de um dia cansativo como todos os outros em que a madrugada desperta o ser e não adormece a necessidade de ir trabalhar, dentro de nós. O pai atravessa a cidade numa carruagem de metro e, depois, no comboio suburbano que parece nunca mais chegar e que vai atulhado de gente, todos com a mesma expressão facial de quem conhece a palavra “rotina” em todas as suas formas e que sabe que o caminho se repete, inverso, no dia seguinte, e assim sucessivamente.

PESSOAS… E A SOMBRA DE UM FRANGIPANI

Caminho no meio da rua. Já passa do meio-dia. É tarde e não há carros a circularem nesta zona pedestre. Continuo a caminhar no meio da rua e a olhar as pessoas que se cruzam comigo. Não vejo o sol pois o céu está nublado. Vejo as pessoas que se cruzam comigo no lado direito e no lado esquerdo do passeio. Uns olham-me com olhar vazio e desconfiado, transparecendo que passear nesta rua é coisa que fazem todos os dias. Uns vão mais apressados para chegar ao barco no Cais do Sodré, para passarem o rio, para irem para o outro lado onde vão dormir e voltam no dia seguinte para fazer o mesmo ritual. Outros caminham simplesmente, caras menos cinzentas que tiram fotografias aos altos edifícios do tempo do Marquês de Pombal, erguidos sobre os destroços, sob as lágrimas e debaixo do pânico do 1º de novembro de 1755.

TRÊS BAGAS DE MEDRONHO

Há nas encostas do Caldeirão três bagas de medronho solitárias. Três bagas que se acomodam nas folhas verdes molhadas da chuva que caiu torrencialmente na noite anterior. Há três bagas de medronho no mesmo cacho, uma amarela, outra verde, outra vermelha. São três bagas solitárias de medronho que ficaram esquecidas no meio do monte. Naquela umbria do Caldeirão, há bagas de medronho que se cristalizam na memória dos habitantes da serra. É uma encosta cheia do ruído das chuvas, das manhãs enovoadas do outono que despoleta no fim de setembro e que deixa as suas marcas em todas as outras árvores, mas não nos medronheiros. É nesta altura que o medronho cresce e se transforma em baga, num vermelho tão forte que fermentará em largos potes até que chegue o Natal.

TALVEZ...

Talvez sim, talvez não… talvez o mundo seja um ovo redondo e não oval, mas achatado nos polos. Talvez os pensamentos dos homens possam ser escritos em crónicas como esta e com isso adiantem algo de novo ao conhecimento do mundo e dos homens em geral. Por que não? É bem possível que este advérbio de dúvida se torne uma certeza e seja entendido na sua plenitude de sentidos. Talvez…

FONTES

De repente, esta manhã, no meio de pensamentos vagos, repete-se, na minha cabeça, uma canção que ouço já desde a infância. Fogem-me os pensamentos para o Alentejo, outra vez, e para os tempos em que em cada vale havia uma fonte que guardava as águas vindas das nascentes dos montes. Em que o correr contínuo da água, vinda dos confins da terra, se juntava à restante, cristalina, que já lá estava a repousar. Ao lado, um cocharro feito à medida dos que por lá passavam e saciavam a sede. Faz-me lembrar uma canção, dessas que se ouvem nas tascas, cantadas a despique. Faz-me lembrar o tempo em que, na parte mais fresca do monte, escondidas dos 40 e tal graus do Alentejo no verão, havia uma fonte que me chamava. E foram esses pensamentos e essas imagens que agregaram a canção, em todos os seus versos, uma história que se pode contar.

DOIS DEDOS DE CONVERSA E UM COPO DE TINTO

- É verdade, meu caro amigo, lembro-me como se fosse hoje! As nossas conversas eram feitas de copos de tinto, acompanhadas por leves tiras de presunto e de pão alentejano, com azeitonas. Um bom vinho alentejano aquele que se bebia nos bancos da nossa tasquinha. O meu amigo, lembra-se? Os assuntos, esses, variavam de acordo com os temas da atualidade, as capas dos jornais do dia ou as histórias do passado, no tempo em que nos conhecemos. O meu amigo, lembra-se? – perguntava, enquanto deitava mais um pouco de vinho no copo, deixando-o meio cheio e meio vazio, ao mesmo tempo.

QUASE

Esta é uma quase história, escrita no momento em que quase agarrava na caneta para escrever. Pensei numa história que pudesse representar quase tudo aquilo que queria dizer em poucas palavras, mas nenhuma história fica verdadeiramente contada sem que se conte desde o início – aquele momento crucial em que se começa a desenrolar o enredo, as peripécias dos heróis e das heroínas. Que se acabe tudo no fim, com uma catarse que remate as ideias, lhes conceda o devido lugar no pódio, assegurando os louros… sem que pelo meio, no desenvolvimento se coloquem as intrigas que desafiam os autores na sua epopeia narrativa.

ADORMECER

- Lembrai-Vos também dos nossos irmãos que adormeceram na esperança da ressurreição, e de todos aqueles que na vossa misericórdia partiram deste mundo: admiti-os na luz da vossa presença (Oração Eucarística II – Intercessões).

Numa noite fria de inverno, no piso gelado de neve, regressando a casa do trabalho distante em terras frias e solitárias, adormeceu ao volante. António adormeceu. Em casa, a família, no lar quente, em sala com tapete de Arraiolos, e com televisão que passava canções de Natal e de felicidade pelo nascimento de Cristo, esperava-o. Em casa, todos esperavam António.

SORRISO

Eu sorri, sabes? Sorri tanto quando te vi chegar que os meus olhos se inundaram de água salgada de felicidade. Sorri como já tinha sorrido antes tantas vezes. Sabes que nós, aqui, neste hospital pintado de paredes monocromáticas e sem sensibilidades, não sorrimos. Somos manipulados para não sorrir nem deixar que o nosso rosto passe as memórias do verão deslocado para camas de hospital.

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