1 Setembro 2023      14:58

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Eu, labrego, me confesso...

Prolifera por aí uma certa intelectualidade artística, bem falante, residente nos grandes centros urbanos, que se acostumou a destratar e a menorizar quem não segue um determinado estilo de vida e que pretende impor, por vários meios, uma linha de pensamento dita “civilizada”, não respeitando quem não alinha em certo tipo de discurso.

Os seus defensores tornaram-se uma espécie de inquisidores relativamente a quem aprecia algumas manifestações culturais há muitos enraizadas no mundo rural. Falo das touradas, das festas populares que têm o toiro como principal elemento, da caça e de um certo estilo de vida muito diferente da sofisticação das grandes cidades.

O tema é fraturante, divide opiniões, suscita paixões e ódios e se as críticas são legítimas, o que se afigura inadmissível, na minha opinião, é a tentativa de destruir tudo ou quase tudo o que tem a ver com uma certa ruralidade. Infelizmente, muitos políticos fogem do tema e da discussão como o diabo da cruz, não assumindo uma posição clara sobre esta matéria e encarando a questão sempre do ponto de vista eleitoral, com muito cálculo à mistura.

Mas nós, os labregos, também temos direito à vida e a defender as nossas tradições.

Infelizmente, fico sempre com a sensação de que quem quer rotular uma determinada forma de vida como a nossa como um sinal de regresso ao passado, apenas o faz pelo desejo de protagonismo, pela necessidade de ser politicamente correto, num tempo em que convêm defender o que está na moda, para daí tirar algum proveito. 

Por isso, as palavras são impor, proibir, vandalizar, perseguir e ofender quem gosta do mundo dos toiros, tão ligado às nossas raízes “selvagens”. A pergunta que também se coloca é a seguinte: qual a ilegalidade destes eventos? São proibidos pela atual legislação? Somos nós, os labregos, uns prevaricadores?

Claro que cada um pode defender aquilo em que acredita, mas a minha revolta é a tentativa deliberada de querer acabar com aquilo que representa algo de importante para um número considerável de “facínoras” e que vai muito para além daquilo a que apelidam de “selvajaria pura”.

Será que cães, gatos, periquitos e hamsters vivem mais felizes e equilibrados em “T0” apertados no coração das grandes cidades e não sentem qualquer dano emocional nas suas vidas, enquanto os seus donos muitas vezes se esquecem de recolher as fezes na via pública? Quem são os mais selvagens? Nós ou os outros?

É um facto que nós, os camponeses, somos frequentemente apelidados de energúmenos, atrasados, bárbaros ou primitivos. Poderão alguns dizer que estou a misturar conceitos, mas de facto, para essa suposta elite que quer impor as suas regras, somos realmente uns provincianos, que dormem a sesta à sombra da azinheira e que se encontram mergulhados numa escala menor, longe dos parâmetros apelidados de pouco éticos, aos olhos de alguns... Não se trata de um discurso de vitimização, nem de uma suposta teoria da conspiração. 

Somente se lembram de nós quando apetece saborear umas sopas de tomate ou umas migas...

Este preconceito encontra talvez analogia em algumas correntes antropológicas do final do século XIX, em que os indígenas de África, da Oceania ou da América do sul eram considerados como povos primitivos, não letrados, num estágio inferior de civilização, muito distante dos padrões europeus. Apesar disso, tinham organizações sociais complexas, nas quais, em muitos casos, eram as mulheres que assumiam uma posição mais influente e que viviam em plena harmonia com a natureza.

Sem exagero, parece-me que muitas vezes, a nossa idiossincrasia é entendida como sendo absurda e sem sentido, somente por ser diferente. E isso implica que haja más interpretações das nossas manifestações culturais. Para esses iluminados, que nada sabem sobre o que é viver no campo, garraiadas, encerros, vacadas, largadas de touros, esperas de gado, demonstrações de pegas, são tudo touradas e revelam somente o nosso “estado selvagem”. Por muito que se diga que não, é a mensagem que se vai tentando passar, não respeitando aquilo que são tradições seculares e que fazem parte de um modo de vida.

Por isso, acham boa ideia criar planos surreais para domesticar javalis e impedir a praga que assola o país, ou criar um centro de acolhimento para piolhos e lêndeas, de modo a evitar o seu extermínio nas nossas cabeças. Bendito e saudoso “Quitoso”. Talvez fosse boa ideia que se agarrassem no bloco de notas e fossem até Barrancos por estes dias, até Vila Viçosa à Festa dos Capuchos ou a Monsaraz. Há uma identidade muito genuína nessas manifestações culturais, algo muito mais forte e intenso, que assenta naquilo que somos, nas nossas memórias e na forma como perspectivamos o futuro. Por muito que não se goste, há que respeitar. E podem continuar a chamar-nos atrasados, porque essas tradições não vão seguramente acabar!