Está aqui

Ricardo Jorge Claudino

Inveja

Invejo o pastor que faz do monte a sua casa.

Afortunada vida que parece ter,

— a dele ou a minha?

Quem vê de longe deseja ser

O que de perto se ignora

Passa o tempo

Nasce o arrependimento

De não ir enquanto é hora.

O pastor cuida do gado

Como eu cuido dos números

Pelo sol ele é castigado

E eu, nem por qualquer astro sou amedrontado!

Caminhamos unidos pela inveja de um sonho

convictos de que sonhar nos faz ser

quem somos.

 

Imagem de arquivomunicipal. cm-lisboa .pt

 

A gota mais pequena desta ribeira

Sempre que aqui estou, sinto ser
a gota mais pequena desta ribeira,
que corre em busca
do encontro inesperado
com um rio que me queira.

Não ambiciono fazer parte
de um rio muito grande,
e afluir em águas famosas
é o que menos quero.

Sempre que aqui estou,
sinto que sou o que
a gota mais pequena desta ribeira
nasceu para ser:
— um pouco do som,
da luz, da paz e do luar
que te faz fechar os olhos
e me desejar.

 

Imagem de wikimedia.org

Ó mãos que beijam a terra

Ó mãos que beijam a terra

na fértil esperança da semente efémera!

Fostes feitas para trazer do futuro

as rugas que o tempo espera.

As rugas que o tempo espera

são lágrimas que o suor ampara.

Ó mãos que beijam a terra,

deixai para trás a miséria,

brindai pela paz,

(a fartura é inimiga da guerra).

Ninguém vos pode vencer!

As mãos que beijam assim

são livres de escolher.

— Dá-me a tua mão;

se quiseres,

juntos seremos a terra

que mais ninguém quis ser.

 

Voltar a ser

Lá bem no fundo do meu íntimo,

recordo o interior de Portugal

lotado de famílias

a vivê-lo, a habitá-lo.

 

Recordo melhor ainda

o acontecimento posterior:

Emigração para o litoral.

 

Os mais novos foram,

os mais velhos ficaram.

 

Não estou chocado;

As civilizações antigas e modernas

sempre procuraram ficar

mais junto à Costa ou

mais junto ao Rio;

e é por isso que cá continuamos.

 

Ainda assim o problema é mais profundo

do que governativo.

Contágio

O contágio começa

quando nos deixamos

contagiar;

e a vida

em todos os seus dias

é um conjunto

de epidemias.

 

Não há como fugir.

É lavar as mãos

contra quem nos quer mal

e é abraçar,

apertar

e beijar

quem queremos amar.

 

Imagem de irishtimes.com

A chaminé da vida

A chaminé da casa

liberta o fumo

das conversas

à lareira.

 

No inverno

a noite termina sempre

onde começa;

a melodia das vozes e

os timbres mais previsíveis

são o aconchego

de quem se limita a escutar.

 

As horas passam

e ninguém ousa romper

o semicírculo da reunião

familiar.

 

A rua cheira a lareira;

e neste momento sei

que o olfacto é o sentido

que me faz lembrar

o passado com todos

presentes.

 

Esperança

Nascem flores no céu

sempre que a terra chove.

A água cai torrencial e

mata a sede dos anjos,

pinta as nuvens de verde

e evapora a fraca descrença.

.

A linha no horizonte

reflecte um sopro de luz;

todos sustentam a hipótese

sobre o regresso dos que sonham ter

as nuvens no céu e as flores na terra.

.

E cheios de esperança vão

os que ousaram criar

o novo mundo.

 

Imagem de capa de postal da Coleção de Énio Semedo

Banco de jardim

São espaços fechados com correntes de ar,

Todos os jardins que aqui frequento.

Há sempre um banco, — o meu lugar,

Que faz esquecer todos os jardins sem assento.

Árvores, plantas, o verde; — ó asas triunfantes!

Levantam o chão, beijam o céu, por instantes.

O céu é o lugar mais infinito para pensar,

Mas eu prefiro ficar sentado no meu banco.

Para fora do infinito não há como raciocinar

E para fora deste banco tenho todo este flanco,

Desde aquela árvore (que calou para consentir),

Não há melhor lugar

Não há melhor lugar

senão aquele onde o tempo

caminha sem nunca chegar,

Miradouro

É urgente desfrutar da paisagem.

É necessário ser o que se vê.

É perigoso olhar para trás

cair onde caímos

pela última vez.

 

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