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literatura

Julio Cortazar - Gostamos tanto da Glenda

G, de Glenda, de Glenda Jackson, sim, mas principiemos pelos gatos, pelas esposas e olhares que não podemos dirigir para nós mesmos (espelhos não servem, são fracos e equívocos substitutos). O primeiro de dez contos. Conto tremendo, pois terrível. Quando o nosso espaço é contido / esmagado por equívocos, que também são nossos, é claro. Mulher e gato, ambos distantes. A mulher tão longe quanto bela. Talvez por isso mais bela. E cada vez mais longe, indecifrável, e tão bela. Frequentadora de museus, analista de quadros. Cada vez mais bela e distante. Por fim, mulher e gato olham de frente.

Costureira

Uma mulher que media dois metros de altura. Gigante no meio dos pigmeus. Tão grande, tão grande que o marido cada vez que passeava com ela, chegava-lhe à cintura. Era uma aldeia enorme, cheia de gente pequena. Uma mulher que media dois metros de altura destoava de tudo o resto. Não se enquadrava, mas também há tanta coisa que não se enquadra e, no fim, após nos habituarmos, passa a ser normal. A vida é mesmo assim. Naquela aldeia ou em qualquer outra.

Frango assado com batatas fritas

Venha uma dose com batatas fritas aqui para a mesa e traga desse franguinho mais pequeno, à moda da Guia. Poderá haver assim loucuras tão grandes como a de Manuel Marafado, habitante da região do algarve, para lá trasladado do Alentejo, que todos os dias comia frango assado com batatas fritas. Era uma dieta pouco saudável, diziam os outros, mas ele não queria saber. Aquilo que lhe interessava verdadeiramente era poder comer frango assado com batatas fritas até ao fim dos seus dias.

Ã

Hoje, que não é hoje, apetece-me escrever um texto sobre algo muito específico. Não que aquilo que tenho escrito anteriormente não seja sobre algo muito específico, mas isto é mesmo sobre uma particularidade. É sobre o Ã. O Ã era uma personagem que fazia parte dos meus textos. Ele vivia numa terra longínqua, onde o céu já não via nuvens desde que os tempos se conheciam.

Leviatã

Há muitos, muitos, anos atrás, quando ainda não havia escrita, escrevia-se com os dedos nas paredes das grutas, coisas como animais e desenhos, pessoas, nuvens, sois. Enfim, escrevia-se só aquilo que se via. Não se sonhava muito nessa altura. As pessoas que sonhavam à noite, tinham mais pesadelos e os sonhos maus eram sobre objetos, monstros ou coisas correntes. Ninguém sonhava com filmes. Na época não havia filmes nem cinema. Nem livros havia. Já tinha dito acima que não havia escrita.

Vasilhas

A teoria predominante na época era a de contraciclo. Isto quer dizer que em vez de se encher as vasilhas, a ideia era esvaziá-las, derramá-las fazendo o maior barulho possível. Maria, mulher matulona, grande e cheia de energia, era a que trabalhava no negócio das vasilhas. Ela sabia o que fazia. Gritava vorazmente aos clientes e atraía a sua atenção. Arranjava assim clientes com fartura que compravam as vasilhas vazias. O reclamo funcionava. A gritaria sobrepunha-se à dos outros vendedores com iguais vasilhas.

Monte Novo

O Alentejo é uma região plana e longa na sua maioria, abruptamente interrompida por algumas montanhas a meio e no fim. No fim de cima e no fim de baixo. O Alentejo é cheio de cores, conforme o tempo em que o olhamos e a maneira como o encaramos. O Alentejo tem cidades, tem vilas, tem aldeias e tem montes, tem vidas e relações, gente igual e gente diferente.

Às pinguinhas

Toda a família fazia tudo às pinguinhas. Na casa, tudo começava e nada era acabado. Era uma família de meias coisas. A única até esse dia que tinham feito até ao fim, eram mesmo os filhos. Esses tinham acabado bem e eram meninos e meninas robustos e robustas. Eram quatro ao todo, dois moços e duas moças.

Bucha à pala

Era um profissional. Andava na vida como quem caminha em cima de uma jangada de bambu, ou de uma sementeira de trigo. Muitas vezes parecia que andava no meio de um milheiral a recolher barbas para se fazer passar por outra pessoa. Com as barbas de milho, as que não enrolava em mortalha e fumava, passava a ser ruivo e sentia-se contente.

Brotoeja

Acordei cheio de comichão. O meu corpo parecia uma posta mirandesa, antes de estar grelhada. A brotoeja é definida da seguinte forma num dicionário: substantivo feminino Erupção cutânea, acompanhada de prurido. (Priberam). Ora, no Alentejo, ganha um significado completamente diferente. Não foge deste mas aprofunda-se e além de comichão intensa, ultrapassa essa fronteira e, ouso dizer, passam a haver pessoas que nos dão brotoeja. Naquele dia acordei cheio de brotoeja.

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