15 Setembro 2014      00:11

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As origens e implicações do referendo escocês – Relatório semanal de Geopolítica da Startfor

A Ideia da independência de Escócia passou de impensável a muito provável. Venha a ser realidade, ou não, a ideia de que a união entre Escócia e Inglaterra, que existe há mais de 330 anos, poder dissolver-se tem enormes implicações nos dois envolvidos diretos, e também na Europa e na estabilidade global.

O Reino Unido foi o centro de gravidade do sistema político internacional, desde o fim das Guerras Napoleónicas até à Segunda Guerra Mundial. Criaram uma estrutura imperial que moldou não só a política internacional, mas também a ordem política interna de alguns países tão díspares como os Estados Unidos ou a Índia. O Reino Unido concebeu e conduziu a Revolução Industrial. De algum modo, esta união foi pivot para a História do mundo. Perceber que ela se pode dissolver é surpreendente e revela coisas muito importantes sobre a o rumo do mundo.

A Escócia e a Inglaterra são inimigos históricos. A sua noção de nações concorrentes vem de há séculos, e o facto de ocuparem a mesma ilha foi motivo de muitas guerras. Historicamente desconfiam um do outro, e tanto um, como outro, dão boas razões para tal. A questão nacional está relacionada com as lutas dinásticas e tentativas de uniões impostas, quer através da conquista, quer através das intrigas dinásticas. Os britânicos estavam muito preocupados que as potências externas, em particular a França, usasse a Escócia como base para atacar a Inglaterra. Os escoceses tinham medo que o desejo inglês de evitar isto resultasse na exploração da Escócia pela Inglaterra, e talvez na extinção da nação escocesa.

A União de 1707 foi o resultado de ações parlamentares de ambos os lados e que levaram à criação do Parlamento da Grã-Bretanha. O motivo da Inglaterra era o velho medo geopolítico. A Escócia fê-lo mais pelos problemas financeiros que não conseguia resolver sozinha. O que foi criado foi uma ilha unida. De uma perspetiva externa, a Escócia e a Inglaterra são variantes encantadoras de uma mesma linha nacional – os britânicos – e não foi necessário considerá-las como duas nações. Se houvesse uma marca nacional distintiva que teria sido de esperar que tivesse sido extinta, até mais que outras marcas culturais, teria sido esta: o nacionalismo escocês, que agora se apresenta intacto. Precisamos de um enquadramento mais amplo para perceber porque é que o nacionalismo escocês persistiu.

 

O princípio na autonomia nacional

O Iluminismo francês e a revolução que se seguiu elevaram a nação a centro moral do mundo. Foi a revolta contra as dinastias transnacionais e fragmentos de nação que governavam grande parte da Europa. O Iluminismo viu a nação, que definiu em termos de língua partilhada, cultura e história, como tendo um direito inerente de autonomia e como o enquadramento necessário para as repúblicas democráticas que defendiam como a forma de governo mais moralmente correta.

Depois da Revolução Francesa, algumas nações, como a Alemanha e a Itália, uniram-se como nações Estado. Depois da 1ª Grande Guerra, quando os impérios Hapsburgo, Hohenzollern, Romanov e Otomano colapsaram, a onda invadiu a Europa. Os impérios foram devolvidos às suas componentes nacionais. Alguns foram misturados numa nação maior, como a Jugoslávia e Checoslováquia, enquanto outros, como a Polónia, se tornaram simples nações Estado. Alguns tiveram repúblicas democráticas, outros tiveram uma variação dessas repúblicas, e outros tiveram ditaduras. Uma segunda grande onda revolucionária aconteceu em 1992, quando a União Soviética caiu e as suas repúblicas constituintes se tornaram nações Estado.

A doutrina do direito à autonomia nacional levou à primeira onda de revolta contra o imperialismo europeu nas colónias americanas, criando repúblicas nas Américas. A segunda vaga de levantamento colonial e retirada dos europeus aconteceu depois da 2ª Guerra Mundial.  Em alguns casos, as nações tornaram-se autodeterminadas. Noutros, foram simplesmente inventados Estados sem corresponderem a qualquer nação e até dividindo algumas. E ainda outros, que apesar de serem nações, a república democrática nunca foi instituída, não passou de intensões. O pensador francês, François de La Rochefoucauld disse: “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”. Mesmo traindo os seus princípios, o mundo inteiro não resistiu à compulsão e agarrou-se firme aos princípios da autonomia através da república democrática. Isto foi efetivamente codificado como o padrão mundial de excelência para a moralidade nacional nos princípios da Sociedade das Nações e posteriormente nas Nações Unidas.

 

 

 

A Imperfeição do Estado Nação

O incrível poder da nação Estado como direito e princípio moral só pode ser executado de modo imperfeito. Nenhuma nação era pura. Cada uma tinha fragmentos e minorias de outras nações. Em muitos dos casos, viviam juntos. Noutros, a maioria tentou expulsar e até acabar com a minoria. E ainda noutros, a maioria exigiu independência e o direito de formar a sua própria nação. Estes conflitos não forma somente internos; também causaram conflitos externos sobre o direito de uma nação particular existir ou sobre as fronteiras que separavam as nações.

Em particular, a Europa dilacerou-se em guerras de 1914 a 1945 sobre assuntos relacionados com os direitos das nações Estado, com a ideia das nações Estado a ser levada à “reductio ad absurdum” – principalmente pelos alemães.

Depois da Guerra, emergiu um princípio na Europa, o de que as fronteiras manter-se-iam, mesmo que fossem imperfeitas, não seriam alteradas. O objetivo era terminar com uma das principais causas de guerra na Europa.

A doutrina foi mal aplicada. O colapso da União Soviética desfez muitas fronteiras, tornando as fronteiras internas, externas. A Guerra Civil jugoslava tornou-se uma guerra internacional, uma vez que a Jugoslávia deixou de existir, e em várias outras guerras civis como a Bósnia, Sérvia e Croácia. Ao mesmo tempo, as fronteiras no Cáucaso foram redesenhadas quando a Arménia anexou o que era parte do Azerbaijão. E num ato que acabou por ser contrário ao princípio, os países da NATO dividiram a Sérvia em duas partes: um aparte albanesa chamada Kosovo e o resto da Sérvia.

O objetivo de tudo isto é perceber que o direito à autonomia nacional vem desde os primórdios da Europa e que tem sido procurado com uma grande intensidade, vontade como a ânsia de um vício que partiu a Europa e redesenhou as fronteiras. Uma das razões da existência da união Europeia é a de formalmente abolir estas guerras de autonomia nacional tentando criar um enquadramento que em simultâneo garanta proteção e trivialize a nação Estado.

 

O Caso escocês

A possibilidade de independência da Escócia deve ser entendia no seguimento do contexto acima descrito. O nacionalismo, a recordação e amor pela história e a cultura, não é algo trivial; conduziu a Europa e até o mundo a mais de dois séculos numa onda crescente. As eleições escocesas que se aproximam, seja qual for o resultado, demonstra o enorme poder do desejo pela autonomia nacional. Se esta vontade é capaz de destruir a união britânica, é capaz de destruir tudo.

Há os que argumentam que a independência da Escócia pode trazer problemas económicos ou complicações sem termos de defesa nacional. Estas não são questões banais, mas também não são o que está realmente em causa aqui. De um ponto de vista económico, não faz qualquer sentido que a Escócia provoque esta espécie de turbulência. Na melhor das hipóteses, os benefícios económicos são incertos. Mas é por isto que qualquer teoria do comportamento humano que assume que o propósito único do ser humano é aumentar os lucros económicos está errada. O ser humano tem outras motivações que são incompreensíveis para o modelo económico mas que empiricamente pode ser demonstrado que são fortes. Se este referendo tiver sucesso, demonstrará que, 300 anos depois, quase metade dos escoceses prefere a incerteza económica à união com uma nação estrangeira.

Isto é algo que deve ser considerado com cuidado num continente que é propenso a conflitos extremistas e que está cheio de fronteiras que não refletem realmente as nações como podem ser entendidas historicamente. A Catalunha, cuja capital é Barcelona, a segunda maior e mais vibrante cidade espanhola, tem um movimento significante de independentistas. O Tratado de Trianon (assinado em Paris em 1920) dividiu a Hungria de tal modo que alguns húngaros vivem na Roménia, e outros na Eslováquia. A Bélgica consiste num grupo de franceses e holandeses (os valões e os flamengos, respetivamente), e não será extremista dizer que se detestam uns aos outros. A metade Este da Polónia foi anexada pela União Soviética e agora é parte da Ucrânia e da Bielorrússia. Muitos chechenos e daguestanos (da República do Daguestão, divisão federal da federação russa) querem separar-se da Rússia, tal como os carélios (grupo étnico do Báltico), que se veem como finlandeses. Há também movimentos no norte de Itália que pretendem separar as suas cidades prósperas do resto de Itália. A guerra entre Azerbaijão e Arménia está longe de estar terminada. Uma outra série de conflitos podem ser encontrados na Europa.

O direito à autonomia nacional não é somente sobre o governar da nação mas também sobre o direito da nação de ocupar o seu espaço geográfico tradicional. E como as memórias históricas da Geografia variam, as possibilidades de conflito também. Tomemos a Irlanda como exemplo: depois da sua guerra pela independência contra a Inglaterra, e depois a Grã-Bretanha, o direito à Irlanda do Norte, cuja identidade nacional depende da memória de quem assistiu ao conflito, resultou num conflito sangrento durante décadas.

A independência escocesa transformará a história britânica. Todos os esforços de minimizar o acontecimento falharam. Isto significa que a maior ilha britânica ficará dividida em dois Estados, e por calorosas que as relações estejam agora, não o eram no passado e não se pode assegurar que o sejam no futuro. A Inglaterra estrará vulnerável de um modo que não estava há três séculos. A Escócia terá que determinar o seu futuro. A parte dura da autonomia nacional é tomar decisões e ter que viver com elas.

Este não é um argumento pró ou contra a nação escocesa. É simplesmente prestar atenção ao enorme poder do nacionalismo na Europa, em particular, e em países colonizados pelos europeus. Até a Escócia se recorda aquilo que um dia foi, e muitos – quiçá uma maioria, quiçá uma larga minoria – desejam que volte a ser. Mas a ideia de a Escócia querer voltar ao passado e de querer ressuscitá-lo é um testemunho incrível, com menos relevo na história escocesa que para a transformação iluminista dos direitos nacionais num imperativo moral que não pode ser suprimido.

Mais importante, talvez, é que, quer o colapso da Jugoslávia, quer o da União Soviética, não foram vistos como precedentes para a Europa, mas o caso escocês será. Ninguém pode negar que a Grã-Bretanha é uma entidade de suma importância. Se isso pode desaparecer o que é que é seguro? Numa época em que a crise europeia ainda se faz sentir, desafiando os princípios e instituições europeias, a dissolução da Grã-Bretanha legitimará lutas pelo nacionalismo que têm estado enterradas há décadas.

Mas temos que lembrar que a Escócia foi esquecida pela Britânia e recuperou sozinha. Isto faz aumentar a questão sobre até que ponto podemos ter a certeza de que as forças nacionalistas, esquecidas só há algumas décadas, estão esquecidas. Não se sabe como votarão os escoceses. O que parece preocupante é que o futuro da Grã-Bretanha está agora em discussão, e existem sérias possibilidades de que deixe de ser como era. O nacionalismo tem tendência a apontar para as conclusões lógicas, como tal, tenho pouca fé na confiança moderada dos nacionalistas escoceses. Nem encontro argumentos convincentes, contra o fim da situação atual, baseados nas receitas fiscais ou movimentos bancários. Desde há séculos, o nacionalismo “reinventa” os assuntos económicos. O modelo de homem económico pode ser um ideal para alguns, mas é empiricamente falso. As pessoas estão interessadas no bem-estar económico, mas não excluindo tudo o resto. Neste caso, não compensa de modo evidente o direito à autonomia da Escócia.

Penso que corra como correr a votação, a menos que os nacionalistas sejam surpreendidos por uma derrota categórica, a caixa de Pandora foi aberta, e não só na Grã-Bretanha. O referendo voltará a legitimar questões que causaram muitos conflitos em todo o continente europeu, ao longo dos séculos, incluindo a Segunda Guerra que deixou 80 milhões de mortos.

Artigo de George Friedman presidente da Stratfor

Mapa e artigo de Stratfor

Tradução e pesquisa: Luís Carapinha