15 Fevereiro 2015      00:00

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O ressurgir da Alemanha

A Chanceler alemã, Angela Merkel, acompanhada de François Hollande, encontraram-se com o presidente russo Vladimir Putin no dia 6 de fevereiro. Depois, no dia 9, encontrou-se com Barack Obama, presidente dos Estado Unidos. O tema principal foi a Ucrânia, mas o primeiro assunto a ser debatido com Obama, na conferência de imprensa pós-reunião, foi a Grécia. A Grécia e a Ucrânia não têm relação do ponto de vista americano. Mas aos olhos da Alemanha sim, porque são ambos indicadores do novo papel da Alemanha no mundo e do desconforto alemão em relação a esses problemas.

É interessante pensar sobre o quão longe a Alemanha foi num curto espaço de tempo. Quanto Merkel foi empossada, em 2005, tornou-se Chanceler de uma Alemanha em paz, numa União Europeia unida. A Alemanha pôs as suas exigências para trás, incluiu-se numa Europa que podia ser, simultaneamente, próspera e livre de conflitos geopolíticos que já tantos maus resultados lhe trouxeram.

Mas, ou a memória, ou o receio quanto à Alemanha subsistiu na Europa. A União Soviética terminou, a Rússia estava num processo de tentativa de recuperação das consequências do seu colapso. O tema mais premente na Europa eram as barreiras que as nações tinham que enfrentar para ser parte integrante da união. A Alemanha estava, de acordo com o que tem sido a sua história, numa posição rara e a que está pouco habituada. Estava numa posição de conforto, segurança e boas relações internacionais.

O mundo que Merkel enfrenta hoje está diferente. A União Europeia está numa profunda crise. Muitos culpam a Alemanha por essa crise, argumentando que as suas políticas de exportação agressivas e as suas exigências para a austeridade serviram os seus interesses individuais e semearam a crise. São acusados de ter usado o euro para servir os seus interesses e de moldar da política europeia para proteger as suas empresas.

A visão de uma Alemanha benigna despareceu um boa parte da Europa, justa ou injustamente. Noutros sítios, imagens da antiga Alemanha ressurgiram, se não como tema principal, certamente como um tema secundário mas em franca expansão.

Num real, mas limitado, sentido, a Alemanha tornou-se o país que os europeus temem. Menos países pedem a adesão à união Europeia, e os membros atuais não mostram muita vontade de aumentar o grupo.

Ao mesmo tempo, a paz que a Alemanha desejava está em risco. Os acontecimentos na Ucrânia fizeram renascer o medo do Ocidente face à Rússia, e a anexão da Crimeia e o apoio aos rebeldes ucranianos. As ações dos russos relembraram os medos dos Estados Unidos sobre o ressurgimento da hegemonia russa, e os americanos equacionam já armar os ucranianos e colocar armas e tropas nos Balcãs, Polónia, Roménia e Bulgária. Os russos já prevêem graves consequências, e senadores americanos querem mesmo armar os ucranianos.

Se será exagerado dizer que o mundo de Merkel está a colapsar, não o será se se disser que o seu mundo e a Alemanha se transformaram de uma maneira impensável há dez anos. O cruzar da crise financeira na Europa e que levou a aumentos preocupantes de nacionalismo – quer no modo de atuação dos países, quer nos pensamentos dos cidadãos – com a ameaça de guerra na Ucrânia transformaram o mundo alemão. Os objetivos alemães passavam por evitar tomar uma liderança política ou desempenhar um papel militar na Europa. A situação atual tornou isso impossível. A crise financeira europeia, que já dura há sete anos, deixou de ser um problema meramente económico e é também agora um problema político.

A crise ucraniana situa a Alemanha numa extraordinariamente desconfortável posição de ter um papel principal no desenrolar da situação e de a manter política e impedir que se torne militar.

O desafio alemão

É importante perceber os problemas simultâneos com os quais a Alemanha se depara. Por um lado, a Alemanha está a tentar manter a União Europeia junta. Por outro, quer assegurar que a Alemanha não carregará o fardo de manter essa unidade. Na Ucrânia, a Alemanha demonstrou, desde o início, apoio ao governo vigente. Eu (George Friedman – editor da Statfor) não penso que os alemães estivessem à espera de reações da Rússia ou dos Estados Unidos, e não queriam participar numa reação militar contra a Rússia. Ao mesmo tempo, a Alemanha não quer retirar o apoio o dado ao governo ucraniano.

É uma contradição comum e inerente à estratégia alemã. Os alemães não querem parecer assertivos ou ameaçadores, no entanto, estão a tomar posições para que sejam ambos. Na crise europeia, tem sido a Alemanha a que mantem a posição mais rígida face à questão grega, mas também face a toda a Europa do sul e à sua catastrófica situação quanto ao desemprego. Na Ucrânia, Berlim apoia Kiev e isso é contrário ao russos, mas não quer definir ou aceitar conclusões óbvias. A crise europeia e a situação ucraniana são reflexos um do outro. Na Europa, a Alemanha está a desempenhar um papel agressivo de liderança. Na Ucrânia, está a desempenhar um papel de liderança mas de um conciliador. O mais importante, em ambos os casos, é que a Alemanha foi forçada a tomar posições – mais pelas circunstâncias que pelas políticas – a tomar papéis de liderança, o que não é confortável para a Alemanha nem para o resto da Europa.

O papel da Alemanha na Ucrânia

Os alemães desempenharam um papel muito importante na queda do governo do presidente Viktor Yanukovich. A Alemanha tentou ser mediadora na tentativa de negociação entre Ucrânia e União Europeia, mas Yanukovich recusou. Os alemães apoiaram os anti-Yanukovich e estabeleceram laços com aqueles que, de entre os opositores do ex-líder ucraniano, se foram destacando, como o presidente da Câmara Municipal de Kiev, Vitali Klitschko, que recebeu formação num programa para líderes em ascensão, promovido pelos Cristão democratas Unidos (CDU), o partido de Merkel. Os alemães criticaram a anexação russa da Crimeia e o apoio de Moscovo aos sectários ucranianos no leste.

À medida que os alemães se foram apercebendo que este tema não seria de resolução simplesmente política, e se pode arrastar para o militar, começaram a recuar no papel de destaque que vinham a ter até então.

Mas esta separação foi difícil. Os alemães adotaram uma postura complexa. Opõe-se aos russos, mas não querem dar apoio militar direto aos ucranianos.  Em vez disso, participam nas sanções à Rússia e tentam ter um papel de conciliação. Foi difícil para Merkel desempenhar estes papéis contraditórios, mas, e dada herança histórica alemã, não foi de todo insensato. O estatuto da Alemanha como democracia liberal é central na sua auto conceção do pós-guerra. É assim que tem que ser. Contudo, apoiar os ativistas em Kiev foi uma obrigação.

Ao mesmo tempo, a Alemanha – em especial desde o fim da Guerra Fria – não tem tido facilidade em desempenhar um papel militar direto. Foi assim no Afeganistão, mas não no Iraque. Participar ou apoiar um envolvimento militar na Ucrânia fez ressurgir memórias de eventos que envolvem a Rússia e que Berlim não deseja confrontar.

Como tal, a Alemanha adotou a já falada política contraditória. Contudo, apoiou um movimento que era considerado anti russo e apoiou sanções contra os russos, mais que qualquer outro país, a Alemanha não quer que a situação política evolua para militar. Não quer envolver-se militarmente na Ucrânia, e a última coisa que a Alemanha precisa é uma guerra a leste da sua fronteira. Tendo estado envolvida no início do problema, e tendo sido incapaz de se afastar dele, a Alemanha também quer resolvê-lo.

A questão grega

A Alemanha repetiu a sua complexa abordagem à Grécia por razões diferentes. Os alemães estão a tentar encontrar alguma espécie de escudo por realizar este papel com os gregos. A Alemanha exporta mais que 50% porcento da sua produção interna, e mais de metade desses 50% vão para a países da zona de comércio livre que tem sido o coração da União Europeia. A Alemanha produz muito mais que aquilo que consome. Necessita de acesso aos mercados ou enfrentará uma severa crise económica interna.

Mas algumas barreiras começam a ser levantadas na Europa. Os ataques de Paris exigem um regresso de guardas fronteiriços e inspeções. Além das ameaças de ataques de terroristas islâmicos, a livre circulação de trabalhadores, de país parta país, ameaça a perda do local de trabalho aos nativos em benefício de emigrantes. Se as fronteiras se tornassem barreiras ao trabalho, e estando os mercados bolsistas já afetados pela crise atual, então quanto tempo falta até as economias mais fracas tomarem medidas protecionistas para impedir a entrada de produtos alemães?

A crise económica libertou nacionalismos enquanto cada país tentou seguir medidas que beneficiassem os propósitos alemães e nas quais muitos cidadãos viram - não poder, mas contudo poderosos – as regulações da União Europeia como ameaças ao seu bem-estar. E por detrás destas regulamentações e do preço do Euro eles viram a mão da Alemanha.

Isto é perigoso para a Alemanha de várias formas. A Alemanha lutou para não ser identificada com esta imagem de agressor; neste caso, essa imagem ressurgiu. O nacionalismo não só ameaça a atirar a Alemanha um passado indesejável, mas também ameaça a zona de comércio livre, essencial para o bem-estar da Alemanha. A Alemanha não quer que ninguém deixe a zona de comércio livre. A Eurozona é menos importante, mas uma vez que algum país deixe este bloco, será um passo mais curto até tomar medidas protecionistas. A Grécia, por si só, seria inconsequente neste aspeto, mas se demonstrasse que estaria melhor com uma bancarrota que a pagar as dívidas, outros países a podiam imitar. E se eles demonstrassem também que sair da zona de comércio livre europeia era benéfico, então toda a estrutura podia estar em causa.

A Alemanha precisava fazer um exemplo da Grécia, e tentou-o fortemente na última semana, permanecendo inflexível, assemelhando-se à antiga Alemanha.  O problema que a Alemanha teve foi o facto de o governo grego não poder capitular se quiser sobreviver. Foram eleitos para resistir à Alemanha. E, apesar das variantes imprevisíveis, não é claro se a bancarrota e um novo começo grego, no geral, ou me parte, não seria benéfico.  E depois disso, a Grécia podia decidir as suas próprias regras. Se os gregos ofereceram um novo fracionamento do pagamento, quem recusaria isto se a alternativa é receber nada?

Assim, a Alemanha estava perante um das outras realidade da sua posição – uma que remonta à sua unificação em 1871. Mesmo sendo uma potência económica, a Alemanha era extremamente incerta. O seu poder residia na habilidade e vontade dos outros países em dar à Alemanha acesso aos seus mercados. Sem esse acesso, o poder alemão pode desaparecer. Com a Grécia, os alemães querem mostrar ao resto da Europa as consequências de uma possível bancarrota, mas se a Grécia a tiver de qualquer modo, a única lição que sairá é que a bancarrota pode ser a solução. Tal como no passado, a Alemanha está, simultaneamente, dominadora e insegura. Ao lidar com a Grécia, a Alemanha não pode arriscar deitar abaixo a União Europeia e não terá a certeza de que ameaça, caso surja, o pode fazer.

As circunstâncias de Merkel em Washington

Foi com isto na mente que Merkel foi a Washington. A enfrentar uma crise alarmante na União Europeia, a Alemanha não se pode dar ao luxo de uma guerra na Ucrânia. Os Estados Unidos ameaçarem armar os ucranianos era tudo o que Merkel não desejava ouvir. Não se trata somente do facto de a Alemanha ter um exército reduzido e não poder participar, ou, em caso extremo, defender-se. Trata-se também do facto de estar a ser ameaçada pela Grécia e de não poder resistir muito mais tempo com a sua rigidez sem ser vista como a grande força da Europa, um papel que não quer desempenhar.

Assim, Merkel foi aos Estados Unidos em busca de tornar a posição americana mais leve. Mas a posição americana também tem razões profundas. Parte tem a ver com os Direitos Humanos, que não devem ser desprezados como uma razão de decisão na administração Obama, e noutras. Mas o facto mais pesado será que, durante cem anos, desde a Primeira Guerra Mundial, durante a Segunda Guerra e a Guerra Fria, os Estados Unidos tem mantido um rigidamente um imperativo: nenhuma hegemonia europeia poderá dominar o Continente, e só uma Europa unida é uma ameaça à sua segurança nacional. Em consequência, independentemente de qualquer debate sobre o tema, a preocupação americana com a Rússia dominar a Ucrânia tornou-se o receio principal de a Rússia tentar a hegemonia.

É irónico que a Alemanha, a quem os Estados Unidos impediram duas vezes de chegar à hegemonia, tenham tentado persuadi-los que um aumento da ação militar na Ucrânia não resolveria o problema. Os americanos sabem-no, mas também sabem que, se recuarem agora, os russos verão isso como uma oportunidade para pressionar mais. A Alemanha, que ajudou à criação quer desta crise ucraniana, quer da crise europeia, pede agora aos Estados Unidos que recuem. O pedido foi compreendido, mas recuar, simplesmente, não é possível. Merkel tem que passar uma mensagem a Putin, tal como fazê-lo retirar o apoio aos sectários ucranianos pró-Rússia. Mas Putin também precisa de algo: a promessa de uma província autónoma. Por agora, Merkel pode viver com essa exigência, mas os americanos vêem-na como indesejável. Uma província autónoma na Ucrânia tornar-se-, inevitavelmente, um rastilho para o resto do país.  

Este é o clássico problema alemão visto de duas maneiras. Ambos derivam de uma falsa força desproporcionada sobre uma fraqueza genuína. Os alemães estão a tentar redesenhar a Europa, mas as suas ameaças estão a perder valor. Os alemães tentaram redesenhar a Ucrânia mas ficaram presos na reação russa. Em ambos os casos, o problema foi que não tiveram poder suficiente, e acabaram a pedir a submissão dos outros. E isso é difícil de ter. Este é o problema da velha Alemanha: os alemães são muito fortes para ser ignorados e muito fracos para impor a sua vontade. Historicamente, os alemães tentaram aumentar o seu poder para impor a sua vontade. Neste caso, não têm intenções disso. Será interessante ver até onde a sua vontade pode aguentar quando a sua força não é suficiente.

Pesquisa, tradução e adaptação de Luís Carapinha