8 Fevereiro 2015      00:00

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A liberdade de imprensa, a laicidade europeia e a cultura islâmica radical

Após o hediondo atentado que ocorreu no coração da Europa, atingindo Paris de forma vil e inesperada, toda a comoção e solidariedade causadas pelas vítimas deste acto terrorista levar-nos-ia para uma complacência com o jornal Charlie Hebdo. Mas passado algum do calor próprio da proximidade com o acontecimento, haverá ou não legitimidade de um cidadão querer ser Charlie e se assumir solidário com um jornal marginal, caricatural e que ofende a fé dos cidadãos, europeus e não só, recolhendo epítetos como pasquim nojento [autoria D. Duarte de Bragança] ou então de promoção de um fanatismo ateu e ainda de fazer provocações e ofensas [ autoria Miguel Sousa Tavares]?

Não querendo desviar o foco principal do cito acto terrorista para o valor da liberdade de expressão e de imprensa, julgo necessário fazer um ponto prévio nesta oratória para me afirmar absolutamente pela existência do Charlie Hebdo, apesar de tudo aquilo que ele possa significar de ataque religioso, de fanatismo, de intolerância e, no limite até de parcialidade, de falta de ética e de duvidoso jornalismo. Os valores ocidentais a que nos habituou a Democracia obrigam-nos a defender inapelavelmente o direito a quem pensa diferente de nós a poder expressar-se. Se esse tipo acção configurar um caso de intolerância, injustiça ou ofensa perante alguém, no quadro desta nossa Democracia existem mecanismos legais para lidarmos contra esses excessos. Há tantas e tantas outras formas de nos manifestarmos contra quem nos de forma cobarde e injustificada e uma delas passaria apenas pelo desprezo e indiferença.

Daqui dou um salto para a laicidade da Europa e de como esse passo enorme no modus operandis de uma sociedade e do seu Estado derivou, paradoxalmente ou não, numa cultura de mais solidariedade perante o próximo, pois assumimos que a nossa identidade cultural e/ou religiosa não deve ser impositiva e esse facto aliado a sistemáticas vagas de emigração proveniente de locais, tão recônditos como diferentes, obrigaram a alargar o leque das opções que os estados europeus davam inicialmente aos seus concidadãos. Nesta Europa que se diz abrangente, inclusiva e tolerante, deram-se passos incríveis do ponto de vista civilizacional que deram exemplo no restante mundo ocidental. Tanto no campo da saúde, como dos direitos humanos, direitos religiosos, justiça, etc, existiram progressos notáveis que fizeram da Europa um refúgio predilecto para quem desejava viver num ambiente social saudável e harmonioso.

Na Europa do século XXI, habituámo-nos a conviver com valores que hoje nos parecem civilizacionais e irrevogáveis, donde consta do prontuário social os conceitos de solidariedade, liberdade, tolerância, pluralismo, justiça, informação, democracia, liberalismo e até de bem-estar, entre outras conquistas da Humanidade. Mas para que a Europa e todo o designado Mundo Ocidental possam gozar de toda esta plêiade de valores desenvolvidos e assimilados, foi igualmente necessário que a reboque da tolerância e de todo um melting potde culturas, se permitisse relativizar tudo, dando se quisermos criar um chavão, um impulso mais niilista desta sociedade contemporânea. E julgo que é essa mesma relativização que o Ocidente faz da vida, é que choca com valores que ainda pernoitam na madrugada árabe, onde convicções e ideiais devem ser defendidos pirricamente. E com a liberdade de imprensa passa-se exactamente o mesmo, ou seja, há de um lado da trincheira uma clara relativização do valor e respeito pela religião que permite a sua sátira em modos mais grosseiros e do outro lado, numa sociedade mais conservadora e até teocrática, um respeito dogmático e inapelável defesa da sua fé, recorrendo a todos os argumentos necessários pela sua estoica defesa. No meio deste famigerado ataque terrorista em Paris a um órgão de comunicação social, surge algo mais profundo no seio das reinvidicações islamitas radicais, que se prende naturalmente com a crítica ao way of life ocidental e à tentativa que lhe é imputada de se impôr em todo o mundo global, desrespeitando as diferenças culturais, sociais e religiosas de outras nações. E realmente devemos aceitar que a era da globalização permitiu alavancar muitos usos e costumes pelo mundo fora, dando a conhecer hábitos culturais tão distantes, por exemplo.

Mas há um claro equívoco desses radicais islâmicos quando julgam que foi o Ocidente que lhes entrou pela porta adentro impondo a sua civilização. Foi antes a cultura de tolerância, de abertura desse Ocidente que permitiu que muitos autóctones da região árabe pudessem viver finalmente em paz e respeitados na sua diferença por outros povos que gerou interesse e entusiasmo de grandes massas populacionais e que acabou por gerar desconforto e ira naqueles que vivem obcecados por ideiais obscurantistas e medievalistas de sociedade e de religião, tentando impôr estados teocráticos ditactoriais nesse quadrante geográfico. Este mundo global que leva tudo num instante ao mais remoto cantinho da terra e que permite a qualquer espectador ficar encantado pelo quotidiano europeu, é visto como um invasor que seduz os soldados deste exército militante que pretende viver no passado, tal não é a sua insegurança sobre competir culturalmente contra vivências ocidentais. E pese embora reconheça que o colonialismo europeu nesses territórios e muitas das ingerências europeias, americanas e até russas nessas zonas, bem como uma posição política tendencialmente pró-israelita, tenha produzido muitos sentimentos anti-ocidente, a secular tradição de governação teocrática desses Estados tem prejudicado em muito a sua total libertação de muitos dogmas e preconceitos perante sociedades vizinhas. Assim, vão fazendo delas suas inimigas, infiéis a combater, quando do outro lado do mundo o ecumenismo é visto como uma necessidade e quase fatalidade a breve trecho e onde o Estado acompanha as várias igrejas e fiéis com atenção e como parceiros, nunca como uma autoridade suprema e castradora de uma sociedade. Na Europa há lugar para todos.

No final de tudo isto, sobra-me ainda espaço para pensar numa Europa que perante o sentimento anti-ocidente deve fazer o seu caminho, sem intromissões militares e ingerências nos respectivos estados onde se vive o drama do radicalismo árabe, apoiando sim todas as causas humanitárias possíveis, ajudando fisica e logisticamente essas populações e encetar parcerias que visem apoiar o incremento da educação desses povos. As primaveras árabes deverão ser feitas pelos seus genuínos arquitectos, com base em idealistas educados e com horizontes largos que permitam que estes territórios possam definitivamente abandonar o caminho da guerra, da intolerância e do retrocesso. E a maior indignação contra aqueles que proferem actos bárbaros em nome do Islão deve surgir dos verdadeiros muçulmanos, tal como recentemente fez o rei Abdullah II da Jordânia. Assim o resultado será incomensuravelmente maior. Dentro das suas fronteiras deve manter-se tal e qual se tem vindo a posicionar, auxiliando todos aqueles que a procuram, combatendo o terrorismo nas respectivas instâncias, mantendo o seu orgulho e a sua forma de viver e sobretudo ignorando todos aqueles radicais que clamam por atenção, tentando fazer crer-nos que o medo perante gente tão odiosa e selvagem é a única opção possível.