22 Outubro 2016      12:48

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VINHETA DE AUTOCARRO I

"PARALELO 39N"

(Conto em três partes)

Chamava- se António. António Mendes. Era assistente operacional da Câmara Municipal e não era um homem feliz. Não encontrava felicidade nos livros que recolhia nem nas revistas que, avidamente, folheava, dia após dia. Nada que o pudesse fazer passar de um homem triste e fechado sobre si mesmo para um homem ambicioso e feliz.

António nunca dormia mais do que quatro horas; muito menos tinha horário compatível com a regular rotação dos dias e das noites. Os homens desde sempre se compatibilizaram com a noite, fechando os olhos e dormindo debaixo da Lua e das estrelas. Há, ainda, homens que não dormem. António acordava às cinco da tarde, depois de se deitar por volta do meio-dia. Era solteiro e pouca família tinha já. Era um homem nos seus 46 anos, cabelo completamente grisalho, as sobrancelhas quase juntas, com os cabelos crescidos, sem estarem alinhados tal como ele próprio não se encontrava alinhado. A pele, rugosa e envelhecida pelo consumo diário e compulsivo de cigarros, os olhos amarelados pela falta de sono, pelo fígado afetado pelas cervejas que bebia, dia após dia.

António tinha rotinas. Levantava-se às cinco da tarde, comia o que ficara da véspera na casa onde vivia, partilhava-o com os cães e gatos vagabundos que a circundavam, já habituados a palmilhar os trilhos até lá, a serem os seus fiéis seguidores, os seus amigos de hoje e de sempre. Todos os dias, dependentes de si. A porta da casa era de zinco, como as telhas que evitavam que a chuva entrasse em sua casa. A casa não estava pintada. Não estava rebocada. A casa de António Mendes era como a alma de António, desleixada e sem ambição. Abandonava a casa às seis e chegava do trabalho às oito da manhã.

Os animais que o rodeavam olhavam-no com olhar esfomeado, esperando os ossos do resto do almoço, feito numa panela de pressão escurecida pelo passar do tempo e pela sua utilização continuada e desleixada. Foi-se o brio de um homem que, outrora, diziam os vizinhos, era um grande homem de ciência, agora desmazelado pelo desgosto que passara. Sempre se inventam estas lendas que procuram criar respostas para as perguntas que se fazem sobre coisas que não se entendem. Os vizinhos não entendiam António. António já não entendia o mundo. Não o queria entender, talvez assim fosse. Talvez fosse só a prisão interior de um homem sem família, de um homem só que pouco falava durante o dia, que menos falava ainda durante a noite, quando, acordado, trabalhava. António tinha trabalho. Percorria todas as noites as ruas da cidade. Na parte de trás de um camião, António era um homem que não via as cores do dia no percurso da sua vida. No trabalho, os cheiros nauseabundos, as imagens putrefactas faziam dele um homem amargo e insensível. Era-lhe impossível imaginar longos campos primaveris, de cores imensas, onde a alfazema inundasse as narinas.

 

António comia sentado numa cadeira plástica, à porta do sítio onde dormia os dias, cadeira que tinha recolhido no trabalho. A cadeira era verde, debotada pelo sol, as tiras de plástico saíam se fossem puxadas só com a força das unhas. Um prato em cima dos joelhos e os cães e os gatos a olhar fixamente António. O chão, à volta, era imundo. Os vizinhos pensavam em António e tinham pena. Deixavam muitas vezes comida à porta, sacos pendurados num prego que havia, espetado, ao lado da sua porta de zinco.

 

(continua…)

 

fotografia de Christopher Leach de christopher-leach-photography.blogspot.pt