17 Setembro 2016      12:12

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UMA PAUSA

"PARALELO 39N"

Faltavam poucos minutos para as cinco horas da tarde e estavam várias pessoas na paragem de autocarro à espera do dito cujo. Um homem, de gabardine cinzenta escura, debotada nas mangas e no colarinho. As calças, de sarja, eram também cinzentas e estavam vincadas mas não se diferenciavam de todas as outras que estavam ao seu lado. Ninguém falava com ninguém. Era essa a regra. Não se conheciam e não se queriam conhecer. Para quê trocar palavras com pessoas que não voltariam a ver. Para que gastar saliva. Cada um tinha os auriculares postos e ouvia as coisas que ouvia. E essas coisas não eram as coisas que os outros diziam. Essas ninguém queria ouvir.

Nisto, chegou um homem baixinho, de aspeto franzino, com um chapéu preto, uma gabardine que arrojava pelo chão e tinha os traços desse arrojar contínuo. Chegou à paragem do autocarro e olhou para toda a gente. Olhou para todos com olhar desconfiado e não se deteve muito tempo em cada um deles. Todos tinham os auriculares. Todos menos um. Ninguém notava a presença do homem franzino e também ninguém se mostrava muito interessado em notar essa presença. Era tarde, estavam todos cansados e o autocarro teimava em chegar atrasado uns minutos. Era o tempo suficiente para o homem baixinho fazer uma pausa.

Parou junto do homem do qual falámos no início. Olhou-o para cima e, no momento em que o homem de gabardine notou a sua presença, disparou cem palavras por minuto, durante cinco minutos, sem fazer uma única pausa. O pobre que o ouvia, após ter aproveitado o silêncio à sua volta durante muito tempo, igual a todos os outros, não conseguia abrir a boca nem podia. O homem baixinho não deixava e contava, além de toda a sua vida, todos os assuntos da atualidade, religiosos, políticos, consumíveis, promoções do continente e do pingo doce, Jumbo, aldi e lidl (acho que não me esqueci de nenhum).

O homem mais alto ainda tentou, num esforço vão e inglório dizer, mas… mas não conseguiu. Não valia a pena. Não havia direito a uma pausa para pensar. Pobre homem cujo ruído meio incompreensível o impedia de pensar. Pobre homem que falava sem parar, sem fazer uma pausa para respirar. Precisava por cá fora todos os pensamentos que ocupavam o pensamento e libertar o espaço onde se acumulavam as ideias. Falou, falou, falou… fez uma pausa de alguns segundos, os suficientes para recuperar o fôlego. Ao mesmo tempo, o homem de gabardine, olhava-o sem saber o que pensar. A quantidade de pensamentos que pelas palavras de um do homem se transportavam para o pensamento do outro homem e não conseguiria nunca transmiti-los em tal velocidade ou de forma igual. Nem o Usain Bolt conseguia digerir tamanha informação, se transpuséssemos a velocidade do pensamento em record do mundo.

Os olhos do homem mais alto esbugalhavam-se, raiavam na parte branca linhas de sangue que se acumulavam tamanha era a velocidade da informação que entrava e homem, sem pausas, cansava-se. As mãos, trémulas, mal conseguiam agarrar no jornal e nada à sua volta parecia ter um mínimo de compaixão por ele. Ninguém se apercebia da situação do homem mais alto. Ninguém parecia reparar, ainda assim, no homem mais baixo. Os sons sibilantes ecoavam só no recetor.

O homem que ouvia chegou ao ponto máximo de angústia. Nada mais podia ser ouvido. Nada que ouvisse o sossegaria depois de tal experiência surreal. O homem baixinho chegou ao fim da narrativa que contara sem pausas e terminando com um decidido hum! seguiu caminho, arrastando a gabardine pelo chão. Quem foi não parou nos passos que foi dando, seguidamente. Quem ficou, pausando o pensamento, agitou-se, sacudiu a cabeça e decidiu não pensar em nada. Uma pausa…só precisava de uma pausa. Guardou o jornal e entrou no autocarro que chegara entretanto. Sentou-se e não conseguiu pensar em nada além do rosto e dos lábios do homem baixinho e da velocidade estonteante em que a sua vida ficou em pausa ao ouvi-lo. 

 

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