11 Março 2017      12:43

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UM FRASCO DE MEL

"PARALELO 39N"

Margarida era uma abelha, uma abelha fofa e trabalhadora que tinha umas asinhas pequeninas e um ferrão afiado. Mas era fofinha e trabalhadora. As patas andavam constantemente cheias de pólen. Tinha uma cor de abelha normal, guerreira. Uma das milhares que constituíam o enxame das abelhinhas. A vida de Margarida, a abelha fofinha, era monótona, seguindo os nossos padrões. Não havia na ideia da abelha Margarida vontade mudar, mas a pobre abelhinha não conhecia mais nada.

Viviam as abelhas todas num lugar. O castelo cortiço. O cortiço era sumptuoso, se seguirmos os padrões de luxo. Era ligeiramente curvado, inclinado para um dos lados. O tampo era também feito da mesma cortiça que constituía o resto do corpo do cortiço. A segurar o corpo, feito de estava, umas puas a segurar. O cortiço assentava em cima de uma laje de xisto e escondia lá dentro um mundo. Havia já casas bem mais modernas… quadradas, com tampos de metal e lá dentro os compartimentos estavam já feitos, preparados a encher de mel nos favos. A cera já tinha sido posta anteriormente, mas não no cortiço da Margarida… Aí tinha de ser tudo feito de raiz. As pobres Margaridas trabalhavam até à exaustão, sabiam que tinham de fazer aquilo e mais nada. Saíam de manhã cedo, voavam uns metros, pousavam numa papoila, ora num rosmaninho, ora numa carqueja, talvez uma urze ou, em dias de grande loucura, as campainhas dos medronheiros que povoavam as encostas.

O cortiço da Margarida ficava numa soalheira, apanhando o Sol logo cedinho. Nas umbrias, o calor não batia tanto e, à noite ficava o orvalho em cima do cortiço. As asinhas da Margarida encolhiam-se e todas se uniam em volta do favo que se prendia no cortiço acima. Na soalheira era mais quentinho, mas era preciso comutar mais para outros sítios, para as umbrias que, tendo desvantagens, era mais fértil e rica em pólen. As patinhas voltavam carregadas, Margarida chegava ao fim do dia cansada, embora não soubesse o que é o cansaço. Digo eu que não percebo muito de psicologia de apicultura.

Tanto trabalho, tantas abelhas no mesmo sítio. Demais, chegara à conclusão a princesa, irmã da rainha. Não era uma rebelião violenta, acabara por ser de mútuo acordo e um dia, em assembleia geral de abelhinhas, Margaridas decidiram que era demais. A princesa tornou-se rainha e o enxame dividiu-se em dois. Abandonaram o cortiço milhares de abelhinhas, incluindo Margarida. Lá foram, esvoaçando sem olhar para trás, anunciado a viagem com um zum zum que não mais parava e se ouvia bem ao longe.

Tanto se ouvia ao longe que, numa aldeia próxima, os homens, espécie diferente, grande, gigante, absurda, ouviram o zum zum e acorreram ao sobreiro onde as Margaridas e a rainha dissidente se alojaram. Estavam todas muito juntas, em jeito daquilo que se chamaria enxame. Queriam liberdade, ansiavam por ela. Só as Margaridas sabiam.

Cada vez mais perto viam aquela espécie gigante, toda vestida de branco como se fosse um extraterrestre aproximar-se e encolhiam-se cada vez mais. O preço da liberdade era grande para algumas delas. A primeira ordem da rainha foi atacar o mostro gigante e branco que se aproximava, soprando um fumo inebriante. Não queriam crer. Estavam sob ataque. Lá foram algumas Margaridas, não a nossa, mas outras iguais. Lançaram-se com o ferrão sem dó nem piedade e, uma a uma, tombavam, inertes sem conseguir furar a capa de extraterrestre do homem.

O fumo era inalado e tirava lentamente a fúria. A rainha e as guerreiras, sem forças, eram dirigidas para uma prisão nova que, no fim, seria uma casa nova. Esta não era um cortiço, era uma caixa, de tampo de alumínio e repartições bem delineadas. Dormiram essa noite como que ainda anestesiadas pelo fumo. Acordaram em casa nova e no meio de uma soalheira diferente. As guerreiras tombadas jaziam na sombra do sobreiro e as sobreviventes, uma a uma, começaram de novo aquilo que sabiam fazer… esvoaçar, pousar no pólen e regressar com as patas carregadas, em repetição extenuante, dia a dia.

 

 

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