8 Dezembro 2019      17:46

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Trump – Vírus e o indivíduo intrinsecamente doente?

Trump – Vírus e o indivíduo intrinsecamente doente? Vírus e a aceitação da crucificação, na sequência de algumas das mais belas e desencantadas palavras de Sixto Rodriguez (também conhecido por Sugar Man)?

Vírus, com toda a certeza, e crucificação. Acção cega e voluntariosa, digamos. O humano é frágil, crê e descrê segundo factores não lineares. Sim, há uma tendência em cada um de nós, para o percebermos basta girar o olhar em torno de um eixo fixo pelos contáveis 360º, o que inclui espelhos e respectivos reflexos, contudo o alimento é extrínseco. O corpo medra devido a nutrientes que recolhe do meio em volta, tal como a mente. Com uma diferença: a mente pode retrair mesmo recebendo alimento, o corpo não. Dissemelhança que impede um jogo com regras claras. Dois filhos educados por racistas tendem a tornar-se racistas, mas ninguém o pode garantir. Se há coisa que o bom filho gosta é de refutar os argumentos do pai. Quer dizer – nem que seja por espírito de contradição. Ou então porque encontra no exterior o Mestre por que tanto ambiciona, e, por fim, lhe dá a conhecer o Monstro que tem em casa. Afinal, ainda que chegue lá por caminhos ínvios, não nos dizem ser essa uma das sumas-aspirações do macho-alfa (já que, nascido e crescido, não pode, em absoluto, regressar ao ponto de partida, i.e., à mamã que imperdoavelmente voltou a pertencer ao papá)?

Quanto a Trump, identificado e isolado o vírus por mentes bem mais excitantes, deixaram abrir o frasco que o continha, libertando-o numa atmosfera ansiosa e densa – onde o ar pesado se mescla com a vontade. Edipiano até à medula

[O excesso de Pai e a carência de afecto materno são notórios, basta observar o seu comportamento primário: os sentimentos subjugados, substituídos pelo apelo do poder e da violência (verbal – pois como todos os tipos estruturalmente inseguros teme a violência física, e para o provar veja-se o que usou como justificação para escapar à guerra do Vietname: daddy, daddy, please), e que por esse motivo, como é uma conduta que só se valida se se dirigir a outros, manifesta-se a todo o instante na sua dimensão mais básica e espectacular. A televisão e o Twitter são, é evidente, o sonho molhado que o mantém acordado.],

não passa de um Dr. Ciclope infantiloide a quem deram o bastão do poder máximo. Talvez o maior crime contra a Humanidade dos tempos modernos cometido por seres supostamente livres desde a eleição de Hitler, em 1933. Sendo que quem cometeu o crime não é verdadeiramente culpado (pois, por agora, tem estatuto de inimputável) – Se quisermos ser optimistas, enquanto certas condições se mantiverem na sociedade americana.

Sejamos claros, não é possível criar e sustentar um modelo económico como o americano sem ter como âncora o Medo. Medo que se focaliza no Outro, com algumas necessárias variantes conforme o caso. Isto numa sociedade relativamente recente, construída entre múltiplos termos. Não é possível estabelecer o individualismo como costume numa sociedade que é, por definição, uma mescla de culturas, no meio do pânico generalizado e de um capitalismo selvagem, sem que isso tenha consequências.

Como a América não pôde ou não conseguiu evitar pecados originais, verdadeiros dínamos geradores de enormes diferenças, e também porque, apesar da mistura, contém minorias, quando o americano médio, educado no modelo típico, eleva o olhar vê necessariamente alguém com quem mais cedo ou mais tarde terá de se confrontar. Não foi educado para ser impassível nem para pensar criticamente no bem maior que é o todo (que está confinado à bandeira e ao hino), para se importar com a sorte do ser humano a viver na porta do lado – O severíssimo modelo capitalista que de modo abrangente professam precisa dos testes de escolha múltipla que impõem aos seus jovens e do que eles representam, pois escolher de entre dois (ou vários) implica deixar um (ou alguns) de fora; e só assim, com um povo à mercê que se habituou a escolher sem que lhe pedissem que justificasse o porquê da escolha, pode a máquina publicitária entrar em campo. Em certa medida, é um processo de automutilação, mas que não é percebido dessa forma, porque endeusa o Eu pela via do consumo, dizendo a cada um que o mundo lhe pertence ou vai pertencer um dia e que é o único senhor do seu destino (tens dinheiro, compra, não tens, pede a tua parte do sonho ao banco, e se ainda assim não te dão o suficiente, sê ambicioso, trabalha muito e anseia pelo dia em que vais ter, pois esse é o teu direito natural). Crença que se aproxima perigosamente do fervor religioso. Como justificar por parte de tantos a viver na parte baixa da pirâmide social tão grande resistência a um sistema de saúde universal e participado pelo Estado, a não ser por essa razão. Enfim, e como as diferenças são abissais, não cabe assim tanto à maior parte, pelo que guardar com todas as forças o que se conquistou é parte crucial do processo. Eis quando entram as armas.

Claro que o que se disse não implica toda uma sociedade – é uma questão de percentagem, e não sabemos a sua real dimensão. Não podemos esquecer que foi do coração dessa mesma América que saíram homens com Muhammad Ali, Jonathan Daniels, Medgar Evers ou James Baldwin, indivíduos que lutaram não temendo perder, partindo sempre de um ponto inferior em relação aos poderes instituídos (não necessariamente estatais).

Esperemos então por 2020, também temerosos. Num mundo globalizado, os vírus propagam-se facilmente.

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Crucify Your Mind - Sixto Rodriguez

“Was it a huntsman or a player
That made you pay the cost
That now assumes relaxed positions
And prostitutes your loss?
Were you tortured by your own thirst
In those pleasures that you seek
That made you Tom the curious
That makes you James the weak?

And you claim you got something going
Something you call unique
But I've seen your self-pity showing
As the tears rolled down your cheeks

Soon you know I'll leave you
And I'll never look behind
'Cos I was born for the purpose
That crucifies your mind
So con, convince your mirror
As you've always done before
Giving substance to shadows
Giving substance ever more

And you assume you got something to offer
Secrets shiny and new
But how much of you is repetition
That you didn't whisper to him too”