3 Setembro 2022      07:41

Está aqui

A torre da igreja

Caiu a torre da igreja! Caiu a torre da igreja e é mau presságio! Caiu a torre da igreja e nesta terra ninguém mais se vai levantar, ninguém mais vai acompanhar as horas e o cronometrar dos tempos. Gritava a mulher idosa em frente aos escombros daquela igreja com duas torres. Assustada, vestida de negro pelos pesos e as mortes todas que tinha já carregado na sua vida. O luto acompanhava-a já há pelo menos mais de um quarto de século. Depois da morte do marido, viera a morte dos pais, seguiram-se irmãos e até filhos e, na convulsão do luto e da dor, aquela mulher prevalecia, carregando em si o peso do negro e do luto, numa forma que é grito sem som, mas que se transforma num grilhão que nos liga ao passado e ao sofrimento. É mentira que quando se retiram as roupas negras a dor passe. O escuro desanuvia a parte exterior da alma, mas a interior, a convulsão de sentimentos, a profusão de memórias de quem nos deixa, essa perdura até ao momento em que as nossas próprias memórias nos abandonem com a nossa morte. Algumas delas viverão no luto daqueles que nos sobrevivem. A vida é um elemento curioso, tão curioso que já a pensamos e repensamos das mais variadas formas.

A existência de duas torres de igreja naquele lugar específico era uma das várias formas de nos aproximar da vida. O som dos sinos marcava cada hora, marcava os momentos felizes e os momentos tristes. Digamos que o epicentro daquela vila, daquela aldeia, era aquela igreja. O epicentro da vida, da espiritualidade, dos rituais do início da vida e do final, todos se agregavam ali, independentes mas ligados àquelas torres.

Perante os olhos daquela mulher, no meio de uma tempestade que interpelara todas as forças da natureza, desde o trovão maior ao tremor de terra, a torre esquerda sucumbiu.

O desconhecido e o imprevisto gritavam aos temores da mulher que tudo perdera, pouco acreditando em dias melhores. O luto não a deixava antever os raios de sol que furavam as nuvens, de onde saíram os mesmos trovões e relâmpagos que destruíram a torre da igreja.

A mulher continuou o lamento, durante a noite, até ao amanhecer, quando a torre e o sino remanescentes soaram o nascer do sol, que parecia ecoar no lado contrário, onde não havia já torre, mas o som permanecia.

Nisto, chegaram os raios de sol, atraídos pelos sinos. A mulher levantou-se, caminhou e, olhando atrás, ninguém a convenceria de que a torre tinha desaparecido.