25 Junho 2016      11:10

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TI XICO

"PARALELO 39N"

Ti Xico Tirador só saía do monte nos meses do Verão e ficava por fora a temporada quase toda. Ti Xico Tirador ganhara a alcunha por passar os meses de verão de machado na mão a tirar cortiça nas planícies do Alentejo. Filho de gente humilde, nascido num monte isolado no meio dos montes, Xiquinho depressa foi crescendo e passou a Xico Tirador e, mais tarde, já na segunda parte da vida, passou a ser o Ti Xico Tirador em sinal de respeito por todos os seus pares e pelos mais novos. Moços da mesma idade tratavam-se por tu e os mais novos tratavam os mais velhos pelo nome, juntando o Ti em sinal de respeito.

Xico Magalhães ou Xico Tirador aperfeiçoara a arte de desnudar os sobreiros, tirando-lhes a cortiça. Só visitava as mesmas árvores de nove em nove anos que despia como se fosse a sua mulher, com todo o cuidado e sensualidade. E havia o machado que cuidava todos os dias antes de começar mais uma jorna, o cantil e a balsa com a carne de lombo, o presunto aquecido pelas altas temperaturas, o tomate pronto a ser cortado e polvilhado com sal grosso, o pão, muitas vezes de dois dias, já meio duro por não passar o padeiro naquelas bandas.

Ti Xico tinha ido para o norte do Alentejo, para uma grande propriedade que se perdia de vista e sabia que ficaria por lá umas boas quinze noites, longe do monte, da sua mulher, das hortas e do gado. Mas valia a pena, era bom dinheiro que se ganhava nestes meses. O trabalho era muito e as mãos ficavam encardidas do trabalho que era tirar a cortiça de um número infinito de sobreiros na planície alentejana. O calor não facilitava, era muito e sem ponta de vento para que o suor que caía pela cabeça abaixo pudesse ser mais fresco e não molhasse a camisa de flanela que usava nesses dias. O chapéu era o mesmo e tinha a marca do sebo. Já não valia a pena mudar de chapéu enquanto não terminasse a temporada da cortiça. A cada dia mudava a paisagem do Alentejo. Tornava-a mais alaranjada e mais despida, mas pronta a crescer de novo.

Cada sobreiro que perdia a cortiça, passava a ser uma nova camada que, em nove anos cresceria de novo. Ti Xico Tirador sabia tirar cortiça e conhecia a arte toda que usava nestes dias, em que parte era melhor o corte para sair o cortiço direito, quais os melhores dias para a corcha sair sem ficar demasiado apegada à árvore mãe. Ti Xico tinha arte, como a tinham os seus companheiros de jorna que, ao nascer do Sol, se faziam acompanhar pelos ajuntadores que reuniam a cortiça para ser reunida no fim do dia. Era depois levada para um sítio só e empilhada por outros homens que não estes que iniciaram o processo.

Em cada árvore, um número que marcava o ano em que tinha sido tirada a cortiça e ajudava a que Ti Xico Tirador, nove anos mais velho, voltasse a desnudar as mesmas sobreiras. Ti Xico tinha amor ao que fazia e conhecia os palmos do Alentejo um a um. Já tinha calcorreado todos com as suas botas cardadas. Ti Xico sabia quantos minutos tinha o dia sem olhar para o relógio e sabia quantas arrobas tinha tirado nesse dia. 

 

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