5 Março 2017      16:00

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STRANGER IN A STRANGE LAND – O LIVRO

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

Stranger in a Strange Land de Robert Heinlein não é um livro, é o livro.

Cinquenta e quatro anos depois. Não meus. Não de ninguém da minha geração. Sem hesitação: o mais inabitual romance saído do, por tendência, mais inabitual dos géneros, a ficção-científica. Incrível proeza.

Como todos os contos, começa como tem de começar, Era uma vez…, seguido de uma condição (de pertença) e de um nome. Um marciano – Valentine Michael Smith. Para os seus amigos terrestres: simplesmente Mike. Mas antes de Mike, houve a primeira expedição tripulada a Marte. Correu mal, muito mal, todos mortos pouco tempo depois da aterragem. Segunda expedição tripulada a Marte, vinte e cinco anos depois; afinal não morreram todos na expedição anterior. Um bebé foi gerado durante essa viagem, entretanto nascido e, enfim, oferecido pelas circunstâncias à superfície marciana. Delicioso bastardo. Sem humanos por perto, restam os marcianos para se assegurarem da sua educação e crescimento. O que fizeram sem esmero, mas apenas por que para essa espécie distante tal actuação é, pela sua natureza, escusada. Vivem de outro modo, para outros quereres (que são, num primeiro olhar, tudo menos afectos). Para os padrões do sapiens terrestre detêm poderes inacreditáveis (por exemplo: com um pequeno contacto com a ponta dos dedos conseguem projectar cada célula do organismo que tocam 90 graus em qualquer direcção – para uma quinta dimensão tão celestial quanto o possam imaginar) … Educado, portanto, por marcianos, logo bastardo duas vezes, que fruitiva criação (outras tantas vezes). Conduzido para a Terra, o seu percurso resume-se facilmente: primeiro, espécime protegido, depois semideus-protector amado e odiado nos respectivos extremos, e por fim mártir. Tanto de entrada para um tão curto resumo. É a vida. A vida de Mike.

Valentine Michael Smith: A trivialidade do nome Smith, a majestade do Arcanjo Miguel, líder celeste de tribo na eterna luta contra o Mal, e de novo o trivial, diferente, do Santo Valentin dos enamorados.

Dos enamorados, não do sexo! … Pois será pelo sexo que se nos apresentará a conduta de Mike … Como inocente que é dos rituais terrestres, não pode nem poderá entender a denegação do mais antigo e cristalino desses rituais, o embate de corpos; ritual onde a obediência à programação genética não choca, não tem de chocar, com a persecução de uma individualidade (não isenta de sacrifício corpóreo, é certo); é pelo sexo que o Humano se alicerça, se estrutura, é o seu ponto de crescimento, é Ser que é corpo antes de ser alma, por muito que o queiram ao contrário; Mike, porque pode o que poucos podem, começar do zero-corpo aos vinte anos, pois os marcianos deram-lhe alma antes que ele se percebesse corpo, abre caminho independentemente dos obstáculos, que não percebe, não vê surgir.

E daí a estranha – e, no parecer, contraditória – essência da verdadeira emancipação de acordo com VMS: percurso que parte da inocência, e em que o sujeito algures durante o caminho, voluntariamente, torna o poder adquirido em sacrifício, ou seja, percurso da inocência para a extrema inocência.

O grande livro de ficção-científica (estávamos então nos anos 60) é também o livro sobre a libertação sexual. E fá-lo sublimemente, sem cair na explicitude linguística ou descritiva, evitando assim o ghetto de género (erótico ou pornográfico). O que se seguiu mostra o quão singulares foram esses tempos, agora perdidos; atirados, também eles, 90 graus em todas as direcções por uma doença da qual se aproveitou uma moral. Deus recuperou o seu lugar na sociedade pelas piores razões.

Heinlein sempre foi dado a riscos, e com Stranger… arriscou tudo; virou contra si religiosos, feministas, plutocratas, objectivistas, sentimentalistas, marxistas, secularistas; todos de igual modo. Por outro lado, o tempo deu-lhe o culto e os epítetos a essa condição associados – Sinfonia de contornos bíblicos. Épico modelar. Impulsionador de condutas.

Menos analistas, dizemos o seguinte: se algo caracteriza o livro é a interjeição Ups!; cada momento de vida e de morte é como um solavanco, i.e., vivemo-lo os leitores, vivem-no as personagens, como se estivéssemos/estivessem sempre na sequência dessa expressão.

Introduziu ainda, pequeno-grande bónus, um novo verbo nas várias línguas (original e respectivas traduções), to grok – grocar, que se pode definir nestes termos: entender tão profundamente, ao ponto do observador se incorporar no observado.

Groquemos juntos, por uma vez!

 

Imagem de empireonline.com