13 Abril 2019      18:30

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A Sociedade do Espectáculo de Guy Debord

Responder ao desafio lançado na obscuridade da noite fria, interminável de neblina. A noite ininterrupta que foi o Inverno mágico de 2013. O desafio, circular, de conteúdo apenas ligeiramente oscilante. A voz, como sempre, rouca. Tinha feito a pergunta. O amigo de longa data que restava...de mãos nos bolsos, encostado à penúltima arcada.

Uma leitura perdida no tempo? Como: Irrecuperável sublimidade? Simplesmente, um livro de outra época? – Memória amplificada: nunca antes começara com um eco, ou fora seguido de uma enxurrada (de resto inavegável, como se em choque com o modelo escolhido; prestes a ser escolhido ou já escolhido?):

Sim, claro, (*) – Começa deste modo: “Todas as sociedades nas quais imperam as modernas condições de produção apenas se podem declarar como uma imensa acumulação de espectáculos. Tudo o que era directamente vivido esvai-se na obscuridade da representação.”

Não há outro livro que te pudesse apresentar com um tão longo excerto registado ao detalhe…

Texto irreprimido, de âmbito cósmico, modulação robótica, método contraditório – o que todos os grandes escritos devem ambicionar, o para lá de si próprios. Terminado em 1967, como um dos antecedentes lógicos do maio de 68. Espera um momento! Para agradar às vozes digitalizadas da modernidade, a pergunta inútil: Ainda vale a pena? Resposta obrigatoriamente pronta: Claro!

Um livro, hoje, igualmente desprezado pelo cinismo de uma direita a viver os seus melhores tempos (porque mais propícios) e por uma certa esquerda que nunca se reviu em temáticas existencialistas próprias de quem considera a individualidade essência (e não norma ou impulso malsão), por princípio é credor de tudo quanto queira e possa, ainda que poucos devedores lhe restem, demasiado ocupados que estão todos os outros.

O que era uma descarga de porvir probabilisticamente forte tornou-se imperativo presente e exclusivo futuro (com o devido cumprimento aos objectivistas, actualmente travestidos de fukuyamistas de serviço e ao serviço!), pelo que também existe um risco: de o lermos como parte do espectáculo que denunciou. Ou pior, lê-lo como acto de comodismo último. Risco que para o seu autor se pode ter tornado demasiada carga. Numa certa noite de outono cometeu suicídio com arma de fogo. E não, não disparou contra a cabeça; a bala, única, dirigiu-a ao coração. Morte imediata de um dos derradeiros revolucionários. De e pela palavra, para a morte voluntária. O destino inevitável. Alguns textos não deixam outra saída.

Calei-me. Tive receio de ter ido longe demais no tom, na inflexão. Discurso em hipérbole, sobressaltado pela oportunidade dada. No fundo, sensação de estranheza; não era o tipo de esparrela em que tinha por hábito cair, pensava eu, mas nessa época era ainda mais inocente. Sobretudo na situação em que me encontrava, com o meu amigo à minha frente.

Ele franziu o nariz, incomodado pelo frio, e depois disse-me que não esperava tal escolha. Por alguma razão, talvez alguma conversa anterior, quem sabe, metera-se-lhe na cabeça que eu iria escolher um qualquer escrito de Céline, o tal que não desgostava dos Nazis, e ordenara o pensamento para o efeito. Tinha uma réplica preparada, que de nada já lhe servia. Disse então, como quem abre uma porta para o infinito: 

Remeto-me ao silêncio, mas com um sorriso nos lábios!

Sem o merecer, tinha finalmente a sua aprovação.  

 

Imagem de libcom.org

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