28 Dezembro 2019      16:01

Está aqui

Sacas de serapilheira em nuvens de nylon e de sonhos

No mesmo dia em que fazia 40 anos, Chico Zé amarrou um fio de nylon numa saca de serapilheira cheia de alfarrobas e abalou pelo cerro acima. Levava também consigo uma outra saca de serapilheira repleta das mesmas cordas de nylon que o lugar que subia era tão alto que as nuvens se acomodavam a meio e o que estava acima disso, poucos tinham sido os que conseguiram ver. Ambas as sacas iam também cheias de sonhos. Passavam-se as nuvens e daí para cima via-se o Sol e o topo do monte. Do lado de lá das nuvens não se via nada do que estava abaixo.

A passagem dessa barreira nebulosa era como se Chico Zé vivesse em dois mundos diferentes. Cá em baixo, a mulher, os 9 filhos, a visão dos lugares das cabras, das ovelhas e de umas galinhas que alimentariam a família, se ainda existissem. A época não era de muita fartura. A comida escasseava e a fome alastrava-se numa época que, hoje acreditava-se, nunca mais voltaria. Por culpa de tantas coisas e por culpa das pessoas, a fome tantas vezes volta.

Aqueles tempos em que, tantos de barriga cheia, se queixam do que têm, leva-os a voltar à maior pobreza, em todos os sentidos e, depois queixam-se disso mesmo, quando foi às suas mãos que as cordas se apertaram e que os campos se secaram. Tal como a suas mentes e bocas, uma praga de nada grassa e desgasta tudo, tornando inférteis os campos e fazendo arder, como toros atingidos por um raio, os que não se calam.

Chico Zé, no mesmo dia em que fazia 40 anos, achou que era altura de atar um fio de nylon numa saca de alfarrobas e ir à procura do que estava para além das nuvens. Tinha ouvido dizer que muitos já tinham feito isso. O Luís da Eira, O Manuel da Fonte e o António Ferreiro. Todos se tinham aventurado pelas nuvens acima, garganeiros pela riqueza que se dizia cá em baixo, haveria lá em cima. Eram campos de diamantes e ouro. As árvores que acima das nuvens estavam teriam folhas que eram notas. Haviam de lá vir ricos. Nunca mais tinham de trabalhar um dia. Os vizinhas vender-lhes-iam as suas terras e passariam a ter empregados para tudo.

Sonhavam com um mundo que, em tempos de fome, era tudo o que os alimentava. Chico Zé, por outro lado não tinha esses sonhos e ambições de riqueza. Como em qualquer boa história que se escreve, com uma moral dirigida a que dela se retire uma lição de vida, esta não é diferente e a nossa personagem queria somente arranjar alimento para a sua prole que, diga-se de passagem, não era nada pequena. Tinha tantos filhos que não sabia já que nome chamar aos três mais novos.

Bem, continuando, a montanha e as nuvens são, claro, uma metáfora de uma vida, dos nossos sonhos e da barreira que nos separa deles. Para todos nós, essa é a mensagem que se retira de Nuvens por onde se passam cordas de nylon. Olhamos para cima e podem ver-se cordas de nylon que se estendem de cima, de lá além das nuvens para cá para baixo, talvez esperando que as pessoas a elas se agarrem e subam acima do visível.

Chico Zé, naquela manhã de janeiro em que fazia 40 anos, agarrou nas sacas a que já aludi e meteu-se pela vereda acima. O cão que o acompanhava sempre, com ele seguia caminho. Escanzelado como o dono, onde as costelas quase rompiam a pele, lá subiam os dois, um descalço e o outro com botas que deixavam que a meia rota roçasse as pedras da vereda. Não bulia uma ponta de vento e as nuvens não se mexiam. Parece aquela história do João e o pé de feijão mas não é. Nem havia nenhum João, nem pé de feijão, nem gigante e muito menos uma galinha dos ovos de ouro.

Levaram dois dias a lá chegar, acima das nuvens e quando chegaram, não queriam acreditar no que viam. Se não chovia cá em baixo, muito menos tinha chovido lá em cima. Apesar de o Sol brilhar com alguma intensidade, tudo era feito de arbustos baixos e pouquíssimas árvores espalhadas pela encosta acima. Do outro lado da encosta havia de haver alguma coisa, pensava o Chico Zé. Sabia que ficar por ali era equivalente ao falhanço. Atravessou uma ribeira que estava quase seca, arranhou as calças nuns tojos e lá chegaram ao outro lado.

Ficou tão impressionado como o cão com o que viram. Uma casa de onde saía fumo pela chaminé. Era uma casa simples e do lado de traz uma pocilga com mais de uma dúzia de javalis que tinham sido meio domesticados. Chico Zé bateu à porta e de lá de dentro apareceu um velho bem velho. As feições não eram estranhas. De imediato, lembrou-se de quem era. Embora fosse ainda uma criança de cinco anos, aquele homem velho era o Luís da Eira que tinha desparecido há tantos anos atrás, sem deixar mulher nem filhos. Foi chorado durante anos pela família, irmãs e pais, mas nunca mais dele nada se ouviu palavra. Perdera-se lá em cima, além das nuvens.

Luís da Eira conhecia-lhe a família. Lembrava-se vagamente dele e dos seus olhos esbugalhados, mas nunca mais conseguira voltar. Nem voltou nem conseguiu nunca fazer saber à família que estava vivo e bem, dentro do possível. Chico Zé contou tudo o que se passava abaixo das nuvens e dos filhos que já tinha, com uma sobrinha dele. Riram e beberam um trago de água. Depois, sob o olhar inquisidor do cão, chegaram a acordo. Chico Zé comprou uma marrã já prenha ao Luís da Eira e deixou em troca o saco das alfarrobas que daria para alimentar os porcos durante pelo menos um ano. As cordas de nylon também lá ficaram. Serviriam no futuro para que Luís as pendurasse até abaixo das nuvens, esperando que algo subisse.

Chico Zé regressou e, para a felicidade dos filhos e da mulher, nesse dia começou a chover e as hortas começaram a dar frutos. Também a marrã pariu as crias que começaram a criar outras e a dar para alimentar aquela gente toda. E, ao mesmo tempo, todos os meses, aparecia de cima das nuvens uma corda de nylon que voltava cheia de alimentos e voltava com uma carta de agradecimento e a certeza de que além das nuvens há um mundo de esperança. A história foi contada anos sem fio e, a cada ano, se acrescentava mais um ponto.