24 Março 2018      23:22

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A Revolução de Veludo (parte I)

Ninguém respeita mais o sagrado que os não crentes. Até porque quando o encontram, não foram a livros ou discursos fáceis. Sabem escolher. Ao não crente dá-lhe para a rebeldia e menos para a contemplação acrítica; é da sua natureza, digamos. E quando lhe dá para a confissão, fá-lo por se querer reencontrar e não para alcançar a absolvição. Méritos, esses, não são sequer comparáveis, pois, convenhamos, é muito mais assustador saber que nunca se saberá o que se encontra para lá do Universo, do que imaginar lá uma divindade benigna à sua imagem.

Dito isto, por osmose, meio caminho entre a inevitável ternura e o sonho racional, circuito de apertada variância, fui levado a reviver o momento maior da primavera desse bem-aventurado ano de 1999: a estreia em sala do sexto filme (terceira longametragem) de Todd Haynes, Velvet Goldmine. Na boca do homem comum: ardente revisitação do breve período que no início dos setenta do século passado ficou conhecido por Glam-Rock. Filme apresentado em Cannes no ano anterior (o medíocre 98, em que nada de relevante se passou, enfim, um Presidente esteve para ser destituído por ter confundido sexo com felação).Todd Haynes não é homem para pequenas brincadeiras, que é como quem diz, só brinca com coisas sérias.

[Se bem nos recordamos, a primeira vez que ouvimos falar dele andava a brincar com Barbies e Kens, e com isso aproveitou para dar corpo à vida trágica de Karen Carpenter, em Superstar: The Karen Carpenter Story (1987).

Depois, animal obstinado, tomou em mãos Jean Genet, ficando-se muito naturalmente pelo sentido genérico, que é como quem diz, menos pelas palavras e mais por gestos de pura rebeldia, algum horror e ultraje gay associados – por puro prazer escapista – ao grande escritor (quem não viu ou quem não se deixou fascinar pelo único filme que Genet escreveu e realizou, Un Chant D’Amour (1950), que atire a primeira pedra) – O filme: Poison (1991).

Tempo passou e, em meados de 1995, novo tiro certeiro na consciência colectiva: SAFE.

Filme que – por princípio – desassossega. Julianne Moore (mulher sempre na circunvizinhança da beleza, o que a torna quase sempre irresistível) interpreta uma mulher de classe alta que desenvolve uma estranha alergia ao meio-ambiente; os adaptados (marido e amigos) não a compreendem e os fanáticos new-age querem, dizem que querem, mas não a podem salvar; pior para ela que se entrega aos segundos…]

Mas mesmo tal – que é bastante – parece muito pouco quando em confronto com o que veio a seguir.

Velvet Goldmine, nome de filme e nome de canção escrita e composta por um génio, o falecido Bowie, mas que não pertence ao alinhamento de nenhum dos seus álbuns.

Mesmo assim, não foi escolhida por acaso – por exemplo, tem um título fabuloso e plenipotenciário. Não se refere concretamente a uma mina de ouro, mas a uma sala de delícias revestida a veludo, sala de transformações e ambiguidades, da qual os monstros, ou sequer a hipótese da monstruosidade, ficam à porta. Quem entra? Como reconhecer os monstros que não se vestem como tal? Como reconhecer um disfarce entre transfigurados e dúbios? Multiplicando o disfarce até ao ponto em que já não é possível notar as diferenças para com a primeira figura? E, aqui chegados, estamos a falar de quê: música ou filme? Sejamos claros: o filme entrou pela música adentro. Mais: como lado-B, é por definição uma canção de retaguarda; o que, contudo, não a circunscreve nem pode circunscrever, pois também (porque não?) é uma canção extraordinária: ritmo e exposição avant-garde, absoluto de fábula e verve em doses massivas. E ainda assim sem posição entre os pontos cardeais do autor, o apoio de um single, que então (no inimitável 72) não fazia sentido um disco que não mudasse de lado. Uma canção com contornos de esquecida, com a qual, uma vez descoberta, se estabelece a seguinte relação emocional imediata: como é que isto ficou fora do Ziggy Stardust? Ficou, nada a fazer. Era um sinal, e por aí nos ficámos por duas décadas e meia. Restava-nos esperar pelo ‘impalpável que nos vai consumindo’, isto é, sem certezas mas grandes expectativas.

Até que veio Todd e com Velvet Goldmine reescreveu a História. É assim que as coisas funcionam. Ironia das ironias. Hipótese vagamente estatística. Outros chamam-lhe fé. (…)

A História segundo Todd começou tarde na evolução humana, com Oscar Wilde. Encaminhado para o seu fabuloso destino (e, no entanto, há quem, menos imaginativo, o defina simplesmente como trágico) por extraterrestres benignos, que o deixaram à porta dos Wilde. Provavelmente bastardo, com toda a certeza génio. Enquanto criança, no primeiro dia de escola, expõe a sua aspiração de vida aos colegas e ao professor:

O que é que queres ser quando cresceres?

Quero ser um ídolo pop!

É o primeiro de uma linhagem de adoráveis marginais, estetas de uma nova era, que, sustentados numa pose que propositadamente mesclava a superioridade intelectual com o desvario estético, interagiam com a sociedade, na qual habitavam por óbvia necessidade, mas apenas como se nela pairassem. Como os futuros anjos vingadores, mas, como antes se dizia, com a pena como arma, e nunca a arma como arma.

 

Décadas depois, e malograda a revolução proposta por Wilde (a homossexualidade fora telhado de vidro com que não contara, ou deixara de contar), Jack Fairy (personagem imaginária?) recolhe o testemunho. Apanhamo-lo, como a Wilde,também ainda criança, no momento em que é sovado por uns quantos colegas de escola. Quero ser um ídolo pop! – Tendo-o dito, o que é mais do que provável, Jack Fairy já não surpreendeu, apenas se expôs. Pagou o preço, exibindo o interior, fairy- fairy - fairy tail. Contudo também se abriu à esperança. Ouve-se: “A infância, dizem os adultos, é a época mais feliz da vida; mas, desde que se lembrava, Jack Fairy sabia que não era assim. Até àquele dia misterioso, em que descobriu que havia outros como ele. Escolhidos para feitos memoráveis. E que um dia este mundo miserável lhes iria pertencer.”

E enquanto se escuta, observamos a metamorfose. De um fio de sangue que lhe escorre do lábio para o queixo penetrante, transmutação milagrosa, como água em vinho ou o pensamento disperso em ideia firme, Jack Fairy gera (pois é de uma germinação que se trata) batom e pinta os lábios, e de uma lágrima enlameada, eyeliner... Quando sorri para a câmara, já não é o sorriso dos fracos, mas também não é o sorriso dos justos, talvez não seja sequer um sorriso, e antes um esgar aberto indistinguível de um sorriso.

É a manifestação da confiança.

 

(CONTINUA)

 

Imagem de screenmusings.org