6 Maio 2017      11:34

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REVISTAS

"PARALELO 39N"

A Dona Giralda apressou-se a sair de casa naquele dia. Bem, naquele dia e todas as semanas no mesmo dia, à mesma hora. A Dona Giralda, filha do Senhor Giraldo, senhorio de muitas casas na vila, mas já falecido há muito anos, era uma senhora que, sem nunca ter casado e sem filhos, vivia sozinha no casarão, com a ajuda da Dona Rosário que sempre a acompanhara toda a vida, como governanta da casa.

Onde iria Dona Giralda todas as semanas à mesma hora. Às 4 da tarde lá saía a mulher toda aperaltada, colar fino no pescoço, vestido de saia e casaco, brincos a condizer com o colar e nunca diferentes da cor do fato. A maquilhagem, impecável. Sapatos de meio salto e meia escuras. Malinha no braço direito e, sem hesitar, fechava a grande porta vermelha, dava duas voltas à chave ainda que lá dentro continuasse a Dona Rosário a passar o pano no pó, a encerar o chão de azulejos vermelhos.

Duas voltas à chave e os primeiros passos na calçada portuguesa, ora cumprimenta a vizinha do lado direito, ora cumprimenta a vizinha do lado esquerdo, a pessoa que se cruza com ela e até o senhor que no lado de lá da rua, tira o chapéu e abana a cabeça em jeito de reverência.

Não era uma mulher muito alta, a Dona Giralda. Tinham um cabelo meio longo, acertado junto ao pescoço e todo penteado. Era uma mulher de presença.

A vizinha do lado esquerdo diz à do lado direito: - Olha, lá vai a Dona Giralda ler as revistas. E acertavam sempre. Pensar-se-ia que ia à papelaria do fundo da rua, passar os dedos e os olhos pelas revistas da semana, ouvindo tal comentário. Mas não, Dona Giralda não ia à papelaria e as duas mulheres já sabiam. Não quiseram dizer tudo. Era assim como se fosse um código. Dona Giralda ia à cabeleireira como sempre fazia, todos as semanas, às quatro da tarde.

Nos outros dias, ficava em casa, sentava-se no cadeirão de couro, antigo, ligava a telefonia e, depois de ter enchido um fino copo de Porto vintage em cristal, sentava-se, lia o jornal e bebia o seu porto. Nos dias em que ia à cabeleireira, adiantava aí por uma hora e meia o seu ritual das quatro da tarde. Não que fosse pernicioso ou obnóxio, nas palavras que gostava de usar, mas alterando, tornara-se já a sua rotina. Não fazia nada que fosse improvisado, não fazia nada fora do contexto. Era preciso, para isso, um forte pretexto.

Na cabeleireira, sentava-se sempre na mesma cadeira. Na cabeleireira lia sempre a mesma revista. Fosse a Nova Gente, A TV 7 Dias, TV Mais, a Máxima ou a Cosmopolitan ou até mesmo aquelas de penteados. Que me desculpem as outras de que não me recordo. Folheava as primeiras páginas, lia atentamente as fotografias e via as palavras e exclamava: - Que pouca vergonha! E indignada, mudava a página. E a senhora que, com a tesoura afiada, escadeava o cabelo e, olhando para a senhora do lado que passava a tinta no cabelo de outra mulher em frente ao espelho, dizia: - Oh Dona Giralda, essa revista é do ano passado. Já a tinha lido. E lera já, e tivera já a mesma exclamação e indignação rotineira. Aliás, nas cabeleireiras, se repararmos bem, nenhuma das revistas está atualizada. Corrijam-me se estou enganado.

Todavia, A Dona Giralda, gostava de folhear as revistas enquanto aguardava o novo penteado, que era igual a todos os outros, como igual era a sua indignação rotineira. E, quando se sentava na cadeira em frente ao espelho, dizia detalhadamente à dona do salão como deveria fazer. Queria algo diferente, assim mais arrojado, queria fugir da rotina, dizia.

A dona do salão abanava a cabeça como sempre fazia, em sinal de aceitação e, ignorando as ordens dadas, porque as deveria ignorar, não mudou nada. Dona Giralda, exultante com o resultado final, olhou para o espelho de frente, e perfil, lado esquerdo, perfil lado direito e, sorrindo, deixou sair: - Era isto mesmo! Estou tão diferente. A dona do salão concordou, sabendo que a rotina se repetiria na semana seguinte e despediu-se. Arrumou as revistas no mesmo molho e desejou uma boa semana a Dona Giralda, como sempre fazia.

E assim foi todas as semanas até ao dia em que Dona Giralda adormeceu no cadeirão de couro com um copo meio de vinho do Porto em cristal. 

 

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