6 Novembro 2020      13:21

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(re)Flectir

São 22h, acabo de sair do trabalho e a distância de regresso a casa é preenchida pelo choro de um pai desesperado que ecoa através do altifalante do carro.

Sinto que o meu trabalho enquanto psicólogo pode ser entendido como perigoso na medida em que me direciona recorrentemente para zonas de conflito. Predominantemente de conflitos internos, mas muitas vezes de conflitos externos...

E quando nos reportamos a crianças, os conflitos externos muitas vezes são erigidos, alimentados e reforçados por quem mais os deveria proteger e salvaguardar. Perco a conta aos progenitores que procuram apoio clínico no sentido do estabelecimento de uma aliança com o terapeuta, não na direção do superior interesse da criança, mas sim da sua própria vontade, em detrimento do outro progenitor, alienando-o. Na esmagadora maioria destes casos, existe a percepção clivada de que aquele que não se alia ao seu ponto de vista, está necessariamente contra eles.

O próprio espaço escolar, tantas vezes fonte de promoção de saúde mental, parece noutras ocasiões funcionar num registo idêntico ao acima descrito, provocando mais entropia do que soluções para a resolução de muitos dos problemas comportamentais observados nas crianças.

E para quem se posiciona nestes universos distópicos e nestas zonas de conflito entre pais e escola há sempre a certeza de que os consensos são muitas vezes difíceis...

Se há pais que negligenciam as preocupações da escola, não é menos verdade que há escolas que não ouvem sequer os pais. Se a escola muitas vezes não consegue resolver os conflitos domésticos das crianças, não é menos verdade que os pais também estão impotentes para resolver muitos dos problemas que se verificam no espaço escolar. Acontece que, numa Sociedade fundamentalmente organizada em torno da culpabilidade, cada interveniente acaba por fazer uma leitura limitada e atribuir a responsabilidade e a expetativa de resolução dos problemas quase sempre exclusivamente à outra parte.

E tanto o sentimento de impotência como a pressão emocional são incomensuráveis de ambos os lados das trincheiras. Nesta troca contínua de atribuição de responsabilidades mútuas para os problemas verificados, perdem-se muitas vezes as crianças. E há tantos psicólogos escolares investidos como juízes...

A minha convicção é a de que as crianças não podem ser olhadas, sentidas e investidas exclusivamente pelas manifestações comportamentais que apresentam. Na esmagadora maioria dos casos, esses comportamentos traduzem um mal-estar interno que tem de ser compreendido e transformado em algo de diferente...

E para que isso possa ser possível, é preciso mudar o ambiente que as rodeia, o que requer coragem para mudar crenças, pensamentos e atitudes (o que é muito desconfortável para qualquer uma das partes).

Parece por isso incontestável que o foco terá de ser holístico e não se pode reduzir à mera constatação da evolução do sintoma.

Ainda sonho que a escola e a família se possam cada vez mais aproximar no sentido da construção de um projeto mais individualizado, partilhado e harmonioso para as suas crianças, onde ambas as partes se aprendem a escutar e a compreender melhor.

Mas a ponte terá que partir da união de uma vontade comum e da renúncia aos julgamentos e ao desejo de culpabilização mútua. Aprisionado entre estes interesses tão divergentes, sinto-me por vezes impotente e quase desesperado perante as circunstâncias e os julgamentos.

E é precisamente nesses dias que mais me interrogo...

Se (com a minha estrutura emocional e experiência profissional acumulada) me fazem sentir tão desorganizado internamente, como se sentirão as suas crianças?